Estrada para Ythaca
Em Vento do Leste de 1970, Jean-Luc Godard discute o cinema e as posições políticas anti-capitalistas. É uma obra rara de um momento específico. Em determinado momento, passados quase uma hora de projeção, aparece em tela Gláuber Rocha, diretor brasileiro, em uma encruzilhada. Uma mulher grávida se aproxima e pergunta qual o caminho do cinema político. Ele aponta para o caminho que julga ser do cinema do terceiro mundo que é "o perigoso, divino e maravilhoso", além de diversas outras palavras que explicam a ideologia da época. A cena dura pouco mais de um minuto, mas é essencial para traduzir um sentimento de época.
Ao ver Estrada pra Ythaca é preciso ter não apenas essa cena, como essa discusão em mente, assim como a letra da música Divino Maravilhoso de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Tanto Gláuber quanto os quatro rapazes do filme brasileiro cantarolaram o refrão e utilizaram a expressão para definir o cinema do terceiro mundo, um cinema de protesto. É preciso ter tudo isso em mente ao entrar na sala de projeção, porque sem essa compreensão o filme se torna vazio, um road movie experimental que vai do nada a lugar nenhum. E os cineastas querem um pouquinho mais que isso, pra dizer o mínimo.
Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti começam a subverter a ordem desde a concepção do filme. Esquecendo as normas da indústria, os quatro assinam roteiro, direção, produção, fotografia e montagem de Estrada para Ythaca. Não satisfeitos, eles são também os quatro protagonistas da história. Quatro amigos que, para esquecer a morte de um quinto, resolvem partir em uma viagem para a fictícia Ythaca. A viagem, apesar de literal em tela, é metafórica, inspirada no poema de Konstantinos Kaváfis que aparece ao final da projeção para não deixar dúvidas. Mais do que um um road movie, Estrada para Ythaca é uma experimentação cinematográfica, uma homenagem ao movimento dominante nos anos 60 e uma busca por novos caminhos que não apenas o estabelecido.
Em tela vemos quatro atores não tão perfeitos, é verdade, quase o ator social do documentário, caminhando por estradas diversas em um carro comum. Temos quase nenhum diálogo ou música, apenas paisagens, cenas cotidianas deles dentro do automóvel ou na beira da estrada, comendo, dormindo ou dando vazão às necessidades fisiológicas. Claro que em alguns momentos eles trocam idéias, brigam, choram, se perdem e cantam. Mas, o clima geral da viagem é a contemplação. Os planos longos e os detalhes cotidianos nos dão a sensação de viagem sem elipses. Estamos lá com eles, em todos os passos da caminhada. E quando o pneu do carro fura, parece que estão próximos de seu despertar.
É então que nos aparece a mesma encruzilhada do filme de Godard e, em quase imitação, ouvimos a divisão dos caminhos, de um lado o cinema do terceiro mundo, divino maravilhoso, e do outro o cinema desconhecido de aventuras. A discussão é antiga e parecia velha, mas os quatro cineastas conseguem trazer a tona como um manifesto pela libertação das idéias. Um jogo metalinguístico e experimental que move a obra. Aqui o objetivo não é entreter o público, mas fazê-lo pensar. Uma visão que, sem dúvidas, evoca o passado, mas sempre buscando ser atual.
O cinema latino da década de sessenta, a exemplo do argentino de Miguel Perez e Fernando Solanas, acreditava que o filme era a forma de convencimento político da população. Eles queriam que, através do que viam em tela, as pessoas pegassem em armas contra a repressão capitalista. Os fundadores do Cinema Novo no Brasil não foram tão longe, acreditando apenas em uma mudança de pensamento filosófico. Ainda assim, ambos defendiam a força da sétima arte. Em pleno século XXI, esses pensadores ainda encontram adeptos e Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti nada mais querem do que uma forma de refletir sobre estas questões.
Melhor Filme na 13ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Estrada para Ythaca é uma obra para poucos. Não por acaso uma sessão gratuita na Sala de Arte da UFBA estava apenas com cinco pessoas. Engraçado que é o filme escolhido para iniciar o projeto Vitrine que visa aproximar platéia e cinema independente. Talvez o tom desagrade alguns, mas é uma proposta também do cinema engajado não ser unanimidade. Para eles, é sempre "preciso estar atento e forte", porque "não temos tempo de temer a morte".
Estrada para Ythaca (Estrada para Ythaca: 2011 / Brasil)
Direção: Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti
Roteiro: Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti
Com: Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti.
Duração: 70 min
Ao ver Estrada pra Ythaca é preciso ter não apenas essa cena, como essa discusão em mente, assim como a letra da música Divino Maravilhoso de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Tanto Gláuber quanto os quatro rapazes do filme brasileiro cantarolaram o refrão e utilizaram a expressão para definir o cinema do terceiro mundo, um cinema de protesto. É preciso ter tudo isso em mente ao entrar na sala de projeção, porque sem essa compreensão o filme se torna vazio, um road movie experimental que vai do nada a lugar nenhum. E os cineastas querem um pouquinho mais que isso, pra dizer o mínimo.
Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti começam a subverter a ordem desde a concepção do filme. Esquecendo as normas da indústria, os quatro assinam roteiro, direção, produção, fotografia e montagem de Estrada para Ythaca. Não satisfeitos, eles são também os quatro protagonistas da história. Quatro amigos que, para esquecer a morte de um quinto, resolvem partir em uma viagem para a fictícia Ythaca. A viagem, apesar de literal em tela, é metafórica, inspirada no poema de Konstantinos Kaváfis que aparece ao final da projeção para não deixar dúvidas. Mais do que um um road movie, Estrada para Ythaca é uma experimentação cinematográfica, uma homenagem ao movimento dominante nos anos 60 e uma busca por novos caminhos que não apenas o estabelecido.
Em tela vemos quatro atores não tão perfeitos, é verdade, quase o ator social do documentário, caminhando por estradas diversas em um carro comum. Temos quase nenhum diálogo ou música, apenas paisagens, cenas cotidianas deles dentro do automóvel ou na beira da estrada, comendo, dormindo ou dando vazão às necessidades fisiológicas. Claro que em alguns momentos eles trocam idéias, brigam, choram, se perdem e cantam. Mas, o clima geral da viagem é a contemplação. Os planos longos e os detalhes cotidianos nos dão a sensação de viagem sem elipses. Estamos lá com eles, em todos os passos da caminhada. E quando o pneu do carro fura, parece que estão próximos de seu despertar.
É então que nos aparece a mesma encruzilhada do filme de Godard e, em quase imitação, ouvimos a divisão dos caminhos, de um lado o cinema do terceiro mundo, divino maravilhoso, e do outro o cinema desconhecido de aventuras. A discussão é antiga e parecia velha, mas os quatro cineastas conseguem trazer a tona como um manifesto pela libertação das idéias. Um jogo metalinguístico e experimental que move a obra. Aqui o objetivo não é entreter o público, mas fazê-lo pensar. Uma visão que, sem dúvidas, evoca o passado, mas sempre buscando ser atual.
O cinema latino da década de sessenta, a exemplo do argentino de Miguel Perez e Fernando Solanas, acreditava que o filme era a forma de convencimento político da população. Eles queriam que, através do que viam em tela, as pessoas pegassem em armas contra a repressão capitalista. Os fundadores do Cinema Novo no Brasil não foram tão longe, acreditando apenas em uma mudança de pensamento filosófico. Ainda assim, ambos defendiam a força da sétima arte. Em pleno século XXI, esses pensadores ainda encontram adeptos e Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti nada mais querem do que uma forma de refletir sobre estas questões.
Melhor Filme na 13ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Estrada para Ythaca é uma obra para poucos. Não por acaso uma sessão gratuita na Sala de Arte da UFBA estava apenas com cinco pessoas. Engraçado que é o filme escolhido para iniciar o projeto Vitrine que visa aproximar platéia e cinema independente. Talvez o tom desagrade alguns, mas é uma proposta também do cinema engajado não ser unanimidade. Para eles, é sempre "preciso estar atento e forte", porque "não temos tempo de temer a morte".
Estrada para Ythaca (Estrada para Ythaca: 2011 / Brasil)
Direção: Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti
Roteiro: Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti
Com: Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti.
Duração: 70 min
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Estrada para Ythaca
2011-06-06T08:40:00-03:00
Amanda Aouad
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