A Rosa Púrpura do Cairo
Woody Allen já declarou que de toda sua obra o filme que mais gosta é A Rosa Púrpura do Cairo. Pudera, o diretor faz aqui uma declaração de amor ao cinema com uma metalinguagem que vale-se do realismo fantástico. Mas, não deixa de ser uma crítica a Hollywood, ao star system e à mentalidade da sociedade americana. Uma obra como poucas que merece ser revisitada sempre.
A história gira em torno da doce Cecília, interpretada por Mia Farrow, aqui ainda esposa do diretor. Ela vive em uma cidadezinha em Nova Jersey, é casada com um brutamontes aproveitador e apaixonada por cinema. Um belo dia chega à cidade o filme A Rosa Púrpura do Cairo. Cecília perde as contas de quantas vezes assiste à fita, sempre embevecida com a trama. Até que o inusitado acontece: o personagem Tom Baxter sai da tela e se declara a ela. A bagunça está formada. O filme não pode continuar sem o "secundário importante". A platéia entra em pânico e depois em revolta. O dono do cinema não sabe o que fazer. Os produtores de Hollywood e o ator Gil Sheperd desembarcam na cidade para tentar encontrar uma solução. E Cecília não sabe como lidar com Tom que tenta aprender a ser real.
O filme é genial em vários pontos, a começar pelo roteiro inusitado, cheio de piadas, referências e temas a serem tratatos. "Tudo é possível em Nova Jersey", justifica um produtor de Hollywood em uma piada ao pequeno estado dos EUA. Mas, a forma como Allen conduz o seu próprio texto é bastante rico, tornando a experiência ainda melhor. Nada é por acaso. Desde o início a solidão de Cecília é construída, assim como fica claro que ela vive dos sonhos que saem da tela. O problema é que o que era simbólico vira real e ela não sabe como lidar com isso. É interessante ver que ela não consegue companhia para a sessão. A cena enquadrada sob o ponto de vista da bilheteria vê várias pessoas pedindo dois ingressos até que ela chega e pede um. Depois temos uma montagem com vários momentos de Cecília assistindo o mesmo filme. As elipses são bem construídas, mostrando outras roupas, outras situações e cenas diversas do filme na tela. Mas, sempre repete a cena da sala, que será onde Tom mudará o rumo da história.
Aliás, é interessante ver o cuidado da direção de arte com a tela do cinema de Cecília que ainda está na dimensão 4x3, diferente da que temos hoje 9x3. Afinal, além de ser um objeto de cena importante, a tela de cinema acaba se tornando uma das personagens do filme. Quando o personagem Tom pula da tela se tornando real, o jogo simbólico só melhora. O que precisa, Cecília só encontra nos filmes. O mais interessante é que o realismo fantástico não para aí. Tom sai, e os demais personagens ficam na tela sem saber o que fazer. Presos na sala, tal qual os convidados do filme O Anjo Exterminador de Luis Buñuel. Tudo bem que aqui eles têm um motivo bem plausível, não podem continuar a cena sem Tom, mas a forma como discutem, passam a ter fome, sono, cansaço, medo, lembra muito a situação do filme do diretor francês, que Allen voltou a homenagear em seu filme Meia Noite em Paris, demonstrando que gosta tanto dessa obra, que talvez gostaria até de tê-la feito.
No mundo real, a balbúrdia não é menor. Diga-se de passagem, igual a O Anjo Exterminador, onde as pessoas começam a se amontoar do lado de fora da casa, querendo ver como aquilo será resolvido. A princípio as pessoas no cinema ficam com medo, depois curiosas, muitas pedem o dinheiro de volta, outras pedem para dar uma olhada na tela. O dono do cinema nervoso cobra dos produtores do filme, que chama o ator. O ritmo das situações, a forma como a montagem nos mostra essa crescente confusão é muito bem feita. Enquanto isso, ele refugia o Tom em um parque de diversões abandonado. É lá que ele e Cecília conversam, se beijam e se conhecem melhor. Quer simbologia melhor que essa? O personagem fora de cena é como um parque sem funcionamento? Ou ali estamos vendo uma diversão particular de Cecília? Ambas e muitas outras visões podem ser consideradas.
Outro ponto importante em A Rosa Púrpura do Cairo é o ator versus o personagem. Quando Gil Sheperd chega à cidade, podemos compará-lo com sua criação,Tom Baxter. Aqui, várias questões são trabalhadas por Allen. Primeiro, o Star System. Cecília, como boa cinéfila da época era apaixonada e acompanhava os atores. Mas, ela realmente conhecia Gil? Ou projetava nele os personagens que via na tela? Tom era um rapaz puro, bondoso ao extremo, vide sua cena no bordel onde acaba encantando todas as moças do local. Uma delas pergunta: você existe? E esta é a maior questão. Tom não existe, quem existe é Gil, e não conseguimos conhecê-lo completamente, principalmente porque naquela situação nunca sabemos quando ele está sendo verdadeiro ou atuando para conseguir devolver Tom à tela.
Por falar em tela, o momento em que a situação se inverte e Cecília pula para a tela é mágica. Apesar do preto e branco, tudo parece ganhar cor e vida para ela que se deslumbra com aquele mundo de fusões. Em determinado momento ela brinca com a questão cenográfica quando diz que o champanhe é, na verdade, refrigerante. Ver essas situações hoje, pode não ter o mesmo impacto para novos espectadores, já que filmes como A Vida em Preto e Branco, ou O Último Grande Herói, já repetiram a situação. Mas, em 1985 era algo inovador, ainda mais com um roteiro tão criativo.
A Rosa Púrpura do Cairo é daqueles clássicos de que nunca nos cansamos e um filme que faz de Woody Allen um dos grandes cineastas de todos os tempos.
A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo: 1985 / EUA)
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Com: Mia Farrow, Jeff Daniels, Danny Aiello, Irving Metzman.
Duração: 81 min
A história gira em torno da doce Cecília, interpretada por Mia Farrow, aqui ainda esposa do diretor. Ela vive em uma cidadezinha em Nova Jersey, é casada com um brutamontes aproveitador e apaixonada por cinema. Um belo dia chega à cidade o filme A Rosa Púrpura do Cairo. Cecília perde as contas de quantas vezes assiste à fita, sempre embevecida com a trama. Até que o inusitado acontece: o personagem Tom Baxter sai da tela e se declara a ela. A bagunça está formada. O filme não pode continuar sem o "secundário importante". A platéia entra em pânico e depois em revolta. O dono do cinema não sabe o que fazer. Os produtores de Hollywood e o ator Gil Sheperd desembarcam na cidade para tentar encontrar uma solução. E Cecília não sabe como lidar com Tom que tenta aprender a ser real.
O filme é genial em vários pontos, a começar pelo roteiro inusitado, cheio de piadas, referências e temas a serem tratatos. "Tudo é possível em Nova Jersey", justifica um produtor de Hollywood em uma piada ao pequeno estado dos EUA. Mas, a forma como Allen conduz o seu próprio texto é bastante rico, tornando a experiência ainda melhor. Nada é por acaso. Desde o início a solidão de Cecília é construída, assim como fica claro que ela vive dos sonhos que saem da tela. O problema é que o que era simbólico vira real e ela não sabe como lidar com isso. É interessante ver que ela não consegue companhia para a sessão. A cena enquadrada sob o ponto de vista da bilheteria vê várias pessoas pedindo dois ingressos até que ela chega e pede um. Depois temos uma montagem com vários momentos de Cecília assistindo o mesmo filme. As elipses são bem construídas, mostrando outras roupas, outras situações e cenas diversas do filme na tela. Mas, sempre repete a cena da sala, que será onde Tom mudará o rumo da história.
Aliás, é interessante ver o cuidado da direção de arte com a tela do cinema de Cecília que ainda está na dimensão 4x3, diferente da que temos hoje 9x3. Afinal, além de ser um objeto de cena importante, a tela de cinema acaba se tornando uma das personagens do filme. Quando o personagem Tom pula da tela se tornando real, o jogo simbólico só melhora. O que precisa, Cecília só encontra nos filmes. O mais interessante é que o realismo fantástico não para aí. Tom sai, e os demais personagens ficam na tela sem saber o que fazer. Presos na sala, tal qual os convidados do filme O Anjo Exterminador de Luis Buñuel. Tudo bem que aqui eles têm um motivo bem plausível, não podem continuar a cena sem Tom, mas a forma como discutem, passam a ter fome, sono, cansaço, medo, lembra muito a situação do filme do diretor francês, que Allen voltou a homenagear em seu filme Meia Noite em Paris, demonstrando que gosta tanto dessa obra, que talvez gostaria até de tê-la feito.
No mundo real, a balbúrdia não é menor. Diga-se de passagem, igual a O Anjo Exterminador, onde as pessoas começam a se amontoar do lado de fora da casa, querendo ver como aquilo será resolvido. A princípio as pessoas no cinema ficam com medo, depois curiosas, muitas pedem o dinheiro de volta, outras pedem para dar uma olhada na tela. O dono do cinema nervoso cobra dos produtores do filme, que chama o ator. O ritmo das situações, a forma como a montagem nos mostra essa crescente confusão é muito bem feita. Enquanto isso, ele refugia o Tom em um parque de diversões abandonado. É lá que ele e Cecília conversam, se beijam e se conhecem melhor. Quer simbologia melhor que essa? O personagem fora de cena é como um parque sem funcionamento? Ou ali estamos vendo uma diversão particular de Cecília? Ambas e muitas outras visões podem ser consideradas.
Outro ponto importante em A Rosa Púrpura do Cairo é o ator versus o personagem. Quando Gil Sheperd chega à cidade, podemos compará-lo com sua criação,Tom Baxter. Aqui, várias questões são trabalhadas por Allen. Primeiro, o Star System. Cecília, como boa cinéfila da época era apaixonada e acompanhava os atores. Mas, ela realmente conhecia Gil? Ou projetava nele os personagens que via na tela? Tom era um rapaz puro, bondoso ao extremo, vide sua cena no bordel onde acaba encantando todas as moças do local. Uma delas pergunta: você existe? E esta é a maior questão. Tom não existe, quem existe é Gil, e não conseguimos conhecê-lo completamente, principalmente porque naquela situação nunca sabemos quando ele está sendo verdadeiro ou atuando para conseguir devolver Tom à tela.
Por falar em tela, o momento em que a situação se inverte e Cecília pula para a tela é mágica. Apesar do preto e branco, tudo parece ganhar cor e vida para ela que se deslumbra com aquele mundo de fusões. Em determinado momento ela brinca com a questão cenográfica quando diz que o champanhe é, na verdade, refrigerante. Ver essas situações hoje, pode não ter o mesmo impacto para novos espectadores, já que filmes como A Vida em Preto e Branco, ou O Último Grande Herói, já repetiram a situação. Mas, em 1985 era algo inovador, ainda mais com um roteiro tão criativo.
A Rosa Púrpura do Cairo é daqueles clássicos de que nunca nos cansamos e um filme que faz de Woody Allen um dos grandes cineastas de todos os tempos.
A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo: 1985 / EUA)
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Com: Mia Farrow, Jeff Daniels, Danny Aiello, Irving Metzman.
Duração: 81 min
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
A Rosa Púrpura do Cairo
2011-06-23T08:08:00-03:00
Amanda Aouad
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