CineFuturo e a Nouvelle Vague
Se ontem foi o dia do Cinema Novo, hoje o CineFuturo respirou ideais da Nouvelle Vague Francesa. Isso porque na mesa redonda da manhã e no diálogo da tarde, contamos com a presença de Antoine de Baecque, roteirista do filme Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague. Uma aula de cinema.
Na verdade, a mesa da manhã tinha como tema O Cinema Transcendental, e como tal, transcendeu o tema para falar de cinema de extremos, cinefilia e contemporaneidade. Mediada por Ivana Bentes, o bate-papo contou com Charles Tesson que falou sobre o cinema indiano, principalmente do diretor Ritwik Ghatak, e Antoine De Baecque que falou de Jean-Luc Godard. Ambos levaram suas palestras por caminhos interessantes. Baecque falou do cineasta francês em todas as suas fases de descobertas, rupturas e reinvenções. Com sessenta anos de atividade, é natural que o cineasta já tenha passado por diversos estilos, momentos e redescobertas da arte cinematográfica. A última notícia, mesmo, foi de que ele iria fazer um filme em 3D, só resta saber como será essa obra.
Já Charles Tesson, resolveu trazer a cinematografia de Ritwik Ghatak por ser um quase desconhecido em nosso mundo. Através de trechos de filmes, principalmente o "Eu vejo você nas nuvens como uma estrela escondida", Tesson deu uma verdadeira aula de análise fílmica, decupando detalhes de cada cena escolhida, desde o enquadramento, os movimentos de câmeras, passando pela história e o simbólico na construção da cena. Falou ainda do cinema indiano em geral, na paixão desse povo pela sétima arte e a despreocupação com remakes. Segundo o crítico, na Índia aconteceu o primeiro remake, quando os indianos resolveram refilmar a cena dos Lumière da chegada do trem na estação.
Na parte das perguntas, várias dúvidas e referências em relação ao cinema indiano e a filmografia de Godard, inclusive o retorno de Gláuber Rocha em uma pergunta em que Antoine de Baecque explicou que Godard considerava Gláuber um oráculo do cinema e, ao mesmo tempo que via o trabalho do brasileiro como uma continuação do seu, via também como uma crítica a ele. E por isso, ele se auto-avaliou e fez a sua primeira ruptura de estilo.
Mas, a pergunta mais interessante veio da internet, perguntando como pensar a cinefilia contemporânea no mundo pós-internet. Baecque respondeu mais detalhadamente que Tesson, mas ambos concordaram que o DVD e a internet aumentaram o acesso aos filmes em geral e abriu um espaço precioso para se discutir o cinema. Afinal, qualquer um pode ser crítico no estado atual, principalmente quando as mídias tradicionais diminuem o espaço para críticas em revistas e jornais. Mas, que é preciso ter um julgamento de procedência, tornar isso útil, relevante. Pois, se antes a crítica cinematográfica era para iniciados, hoje todos podem se dizer críticos, mas é preciso passar algo relevante às pessoas que lêem. Esse pensamento encontra eco nas discussões do papel da crítica, que sempre deve ser um processo impulsionador do cinema, ao discutí-lo, apontar tendências e depurar a linguagem cinematográfica.
Na parte da tarde, foi exibido o filme Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague. O filme é extremamente interessante pois resgata através dos dois principais nomes do movimento, a efervescência da época. Não é um filme de passado, ele nos torna próximos dos acontecimentos ao criar um formato inusitado. Há dois guias em tela, o próprio roteirista Antoine de Baecque em sua máquina de escrever e na voz over narrando a história, e a atriz Isild Le Besco folheando revistas, livros e documentos da época. Ambos em uma montagem dinâmica vão remontando a história, desde Os Incompreendidos no Festival de Cannes 1959. O filme percorre toda a relação dos dois cineastas desde esse momento-chave onde a Nouvelle Vague ganhou corpo, saindo das páginas da Cahiers Du Cinéma para as tela do cinema, até a ruptura definitiva que começou em maio de 68.
O filme é composto por fotos, vídeos e materiais da época como trechos de filmes, além das cenas já citadas do narrador e da pesquisadora. Bastante histórico, sem muito juízo de valor, o diretor Emmanuel Laurent e o roteirista reconstróem essa história de uma maneira didática, clara e interessante. Interessante a percepção de que Godard precisou da mão de Truffaut para começar a filmar, pois o primeiro era apenas um garoto desconhecido, enquanto o segundo já era uma estrela. A forma como os dois dialogam em seus trabalhos na fase inicial e na ruptura de pensamento a partir de 68, quando Truffaut entende o momento político, mas não acredita que seja o papel do cinema tocar nesses assuntos, enquanto que Godard é extremista ao defender o cinema político, chegando a chamar Truffaut de cinema burguês.
O filme se resume a esse período, começando e terminando com Os incompreendidos em um link interessante a partir do pequeno ator Jean-Pierre Léaud. No diálogo que se seguiu à projeção, Antoine de Baecque explicou que optou por falar dessa relação porque fazer um filme sobre a Nouvelle Vague seria impossível diante da quantidade de assunto. Mas, que esses dois nomes representavam bem o movimento, vide que até hoje são as grandes referências cinematográficas mundiais. Aproveitei o bate-papo para questionar seu papel de roteirista no filme, já que a Nouvelle Vague criou a teoria do diretor-autor. Baecque disse que não se considera um roteirista, mas um pesquisador e historiador que procurou apenas resgatar essas histórias, mas confirmou a diminuição do movimento ao papel do roteirista, já que sempre acreditaram que o filme é feito no processo da filmagem e que o roteiro é apenas um guia. E que ainda hoje na França, essa questão prevalece. É mesmo uma briga antiga.
À noite, como sempre, vieram os longametragens e os curtas que estão participando da mostra internacional e competitiva respectivamente. Destaque para o curta-metragem Esc4escape de Alexandre Guena, o melhor que vi até agora no festival. Uma linguagem experimental e inovadora em uma mistura de imagens, fotos, sons e representações cênicas para contar uma história de quatro sádicos em busca de saídas para suas inquietações. Boas interpretações, como a de Bertrand Duarte que também faz a narração.
Vimos ainda os curta-metragens Sala dos Milagres de Cláudio Marques e Marilia Hughes, em um bonito registro da Romaria de Bom Jesus da Lapa, destaque para participação do cineasta Edgard Navarro. E Haruo Ohara de Rodrigo Grota, sobre o imigrante japonês que, como agricultor e fotógrafo produziu mais de 20 mil fotos de Londrina e região ao longo de 50 anos no país. Aliás, a fotografia do filme é o grande destaque dessa produção.
Entre os longametragens, foi exibido Djalioh, de Ricardo Teixeira que, ao demorar tanto tempo explicando a proposta do filme antes da projeção e terminar pedindo paciência da platéia, já demonstrou que o que veríamos não seria fácil. E não foi. Uma espécie de leitura cênica de um livro de Gustavo Flaubert acaba sendo inacessível para o público em geral. Por fim, veio Posição entre as estrelas, filme de Leonard Retel Helmrich, onde pudemos finalmente ver a técnica Single Shot Cinema em ação. É interessante analisar os movimentos conseguidos pelo cineasta e a possibilidade de estar tão próximo do objeto de observação. Helmrich joga bem com as imagens, como quando vemos a mudança de enquadramento juntar a igreja cristã com a muçulmana, por exemplo. Ou no jogo de luz em que estrelas no céu se tornam gotas d´água na plantação. Mesmo com uma linguagem realista do cinema direto, onde não há interferência na realidade, os movimentos de câmera tornam o filme ágil, mas sem deixar de ter um viés político e social.
Ainda no dia de hoje, a Retrospectiva Bertolucci continuou com exibição de Partner, Os Sonhadores e O Pequeno Buda. A Mostra Amor à Francesa com Hiroshima Mon Amour e Sob os tetos de Paris. E a Retrospectiva Sandrine Bonnaire com Poderá ser amor? e O nome dela é Sabine.
Fotos de divulgação do CineFuturo.
Na verdade, a mesa da manhã tinha como tema O Cinema Transcendental, e como tal, transcendeu o tema para falar de cinema de extremos, cinefilia e contemporaneidade. Mediada por Ivana Bentes, o bate-papo contou com Charles Tesson que falou sobre o cinema indiano, principalmente do diretor Ritwik Ghatak, e Antoine De Baecque que falou de Jean-Luc Godard. Ambos levaram suas palestras por caminhos interessantes. Baecque falou do cineasta francês em todas as suas fases de descobertas, rupturas e reinvenções. Com sessenta anos de atividade, é natural que o cineasta já tenha passado por diversos estilos, momentos e redescobertas da arte cinematográfica. A última notícia, mesmo, foi de que ele iria fazer um filme em 3D, só resta saber como será essa obra.
Já Charles Tesson, resolveu trazer a cinematografia de Ritwik Ghatak por ser um quase desconhecido em nosso mundo. Através de trechos de filmes, principalmente o "Eu vejo você nas nuvens como uma estrela escondida", Tesson deu uma verdadeira aula de análise fílmica, decupando detalhes de cada cena escolhida, desde o enquadramento, os movimentos de câmeras, passando pela história e o simbólico na construção da cena. Falou ainda do cinema indiano em geral, na paixão desse povo pela sétima arte e a despreocupação com remakes. Segundo o crítico, na Índia aconteceu o primeiro remake, quando os indianos resolveram refilmar a cena dos Lumière da chegada do trem na estação.
Na parte das perguntas, várias dúvidas e referências em relação ao cinema indiano e a filmografia de Godard, inclusive o retorno de Gláuber Rocha em uma pergunta em que Antoine de Baecque explicou que Godard considerava Gláuber um oráculo do cinema e, ao mesmo tempo que via o trabalho do brasileiro como uma continuação do seu, via também como uma crítica a ele. E por isso, ele se auto-avaliou e fez a sua primeira ruptura de estilo.
Mas, a pergunta mais interessante veio da internet, perguntando como pensar a cinefilia contemporânea no mundo pós-internet. Baecque respondeu mais detalhadamente que Tesson, mas ambos concordaram que o DVD e a internet aumentaram o acesso aos filmes em geral e abriu um espaço precioso para se discutir o cinema. Afinal, qualquer um pode ser crítico no estado atual, principalmente quando as mídias tradicionais diminuem o espaço para críticas em revistas e jornais. Mas, que é preciso ter um julgamento de procedência, tornar isso útil, relevante. Pois, se antes a crítica cinematográfica era para iniciados, hoje todos podem se dizer críticos, mas é preciso passar algo relevante às pessoas que lêem. Esse pensamento encontra eco nas discussões do papel da crítica, que sempre deve ser um processo impulsionador do cinema, ao discutí-lo, apontar tendências e depurar a linguagem cinematográfica.
Na parte da tarde, foi exibido o filme Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague. O filme é extremamente interessante pois resgata através dos dois principais nomes do movimento, a efervescência da época. Não é um filme de passado, ele nos torna próximos dos acontecimentos ao criar um formato inusitado. Há dois guias em tela, o próprio roteirista Antoine de Baecque em sua máquina de escrever e na voz over narrando a história, e a atriz Isild Le Besco folheando revistas, livros e documentos da época. Ambos em uma montagem dinâmica vão remontando a história, desde Os Incompreendidos no Festival de Cannes 1959. O filme percorre toda a relação dos dois cineastas desde esse momento-chave onde a Nouvelle Vague ganhou corpo, saindo das páginas da Cahiers Du Cinéma para as tela do cinema, até a ruptura definitiva que começou em maio de 68.
O filme é composto por fotos, vídeos e materiais da época como trechos de filmes, além das cenas já citadas do narrador e da pesquisadora. Bastante histórico, sem muito juízo de valor, o diretor Emmanuel Laurent e o roteirista reconstróem essa história de uma maneira didática, clara e interessante. Interessante a percepção de que Godard precisou da mão de Truffaut para começar a filmar, pois o primeiro era apenas um garoto desconhecido, enquanto o segundo já era uma estrela. A forma como os dois dialogam em seus trabalhos na fase inicial e na ruptura de pensamento a partir de 68, quando Truffaut entende o momento político, mas não acredita que seja o papel do cinema tocar nesses assuntos, enquanto que Godard é extremista ao defender o cinema político, chegando a chamar Truffaut de cinema burguês.
O filme se resume a esse período, começando e terminando com Os incompreendidos em um link interessante a partir do pequeno ator Jean-Pierre Léaud. No diálogo que se seguiu à projeção, Antoine de Baecque explicou que optou por falar dessa relação porque fazer um filme sobre a Nouvelle Vague seria impossível diante da quantidade de assunto. Mas, que esses dois nomes representavam bem o movimento, vide que até hoje são as grandes referências cinematográficas mundiais. Aproveitei o bate-papo para questionar seu papel de roteirista no filme, já que a Nouvelle Vague criou a teoria do diretor-autor. Baecque disse que não se considera um roteirista, mas um pesquisador e historiador que procurou apenas resgatar essas histórias, mas confirmou a diminuição do movimento ao papel do roteirista, já que sempre acreditaram que o filme é feito no processo da filmagem e que o roteiro é apenas um guia. E que ainda hoje na França, essa questão prevalece. É mesmo uma briga antiga.
À noite, como sempre, vieram os longametragens e os curtas que estão participando da mostra internacional e competitiva respectivamente. Destaque para o curta-metragem Esc4escape de Alexandre Guena, o melhor que vi até agora no festival. Uma linguagem experimental e inovadora em uma mistura de imagens, fotos, sons e representações cênicas para contar uma história de quatro sádicos em busca de saídas para suas inquietações. Boas interpretações, como a de Bertrand Duarte que também faz a narração.
Vimos ainda os curta-metragens Sala dos Milagres de Cláudio Marques e Marilia Hughes, em um bonito registro da Romaria de Bom Jesus da Lapa, destaque para participação do cineasta Edgard Navarro. E Haruo Ohara de Rodrigo Grota, sobre o imigrante japonês que, como agricultor e fotógrafo produziu mais de 20 mil fotos de Londrina e região ao longo de 50 anos no país. Aliás, a fotografia do filme é o grande destaque dessa produção.
Entre os longametragens, foi exibido Djalioh, de Ricardo Teixeira que, ao demorar tanto tempo explicando a proposta do filme antes da projeção e terminar pedindo paciência da platéia, já demonstrou que o que veríamos não seria fácil. E não foi. Uma espécie de leitura cênica de um livro de Gustavo Flaubert acaba sendo inacessível para o público em geral. Por fim, veio Posição entre as estrelas, filme de Leonard Retel Helmrich, onde pudemos finalmente ver a técnica Single Shot Cinema em ação. É interessante analisar os movimentos conseguidos pelo cineasta e a possibilidade de estar tão próximo do objeto de observação. Helmrich joga bem com as imagens, como quando vemos a mudança de enquadramento juntar a igreja cristã com a muçulmana, por exemplo. Ou no jogo de luz em que estrelas no céu se tornam gotas d´água na plantação. Mesmo com uma linguagem realista do cinema direto, onde não há interferência na realidade, os movimentos de câmera tornam o filme ágil, mas sem deixar de ter um viés político e social.
Ainda no dia de hoje, a Retrospectiva Bertolucci continuou com exibição de Partner, Os Sonhadores e O Pequeno Buda. A Mostra Amor à Francesa com Hiroshima Mon Amour e Sob os tetos de Paris. E a Retrospectiva Sandrine Bonnaire com Poderá ser amor? e O nome dela é Sabine.
Fotos de divulgação do CineFuturo.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
CineFuturo e a Nouvelle Vague
2011-07-29T08:20:00-03:00
Amanda Aouad
cinefuturo2011|Festival|materias|
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