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A arte de documentar a ficção*
A arte de documentar a ficção*
Desde que John Greison assistiu a Nanook, o Esquimó (Nanook of the North) de Robert J. Flaherty, criando o termo documentário, a teoria cinematográfica constrói e reconstrói essa definição. Há até aqueles menos esclarecidos que não consideram um documentário um filme. Tolos eles que não sabem que o cinema nasceu documental, seja nas experiências de estúdio de Thomas Edison ou nos registros diários dos irmãos Lumière. Onde termina o real, onde começa a ficção? Questões que nunca saberemos ao certo como serão respondidas.
Provavelmente com esses questionamentos em mente, Eduardo Coutinho colocou um anúncio no jornal procurando mulheres com histórias interessantes. Diversas apareceram e ele as entrevistou em um teatro vazio. Depois, convidou atrizes, dentre elas, três famosas: Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra; e fez uma brincadeira de montagem, misturando ficção e realidade para expor sentimentos e contradições da alma feminina. Assim nasceu “Jogo de Cena”, seu sexto longametragem.
Eduardo Coutinho é o maior nome do cinema documentário do país. Não apenas pelo seu talento para contar histórias reais, mas pelo grande número de bons filmes que já fez. Começando por “Cabra Marcado para Morrer”, que, a princípio, seria uma ficção, passando por “Boca de Lixo”, “Edifício Master” e “Peões”. Sua capacidade de construir e descobrir situações interessantes fez com que fosse capaz de propor ir para o Nordeste filmar à procura de um tema interessante e ter total apoio para isso. Assim, surgiu “O Fim e o Princípio”, um belo documentário sobre uma família em um vilarejo nordestino.
Com “Jogo de Cena”, ele começou uma série de experimentos que já passou por “Moscou”, filme sobre os ensaios de uma peça de teatro, e sua obra mais recente, “As Canções”, em que dezoito pessoas contam quais canções marcaram as suas vidas, construindo uma espécie de musicoterapia em tela. Assim também é “Jogo de Cena”, onde atrizes e pessoas reais abrem suas vidas para as câmeras em um jogo fascinante.
Apesar de alguns detalhes de entrevistadas subindo as escadas e chegando ao palco, a maior parte do filme tem apenas um enquadramento. Em plano médio, uma mulher, sentada em uma cadeira, com a pláteia do teatro vazia ao fundo. Por vezes, fecha o plano em um close, ou abre um pouco mais. Porém, sem muita alteração. A questão em “Jogo de Cena” é saber o que é verdade e o que é encenação. Mas, o que é realmente verdade quando estamos na frente de uma câmera? Este, talvez, seja o maior questionamento. Principalmente, quando as atrizes expõem um pouco da própria experiência, mesmo que seja na preparação da cena, na preocupação do colírio de Marília Pêra, na dificuldade de Fernanda Torres que pede para repetir várias vezes (e tudo permanece no filme) ou a revolta de Andréa Beltrão por ter chorado.
A proposta do filme parece ser mesmo essa e apenas pelos rostos famosos fica um pouco mais fácil identificar mulheres verdadeiras, porém outras atrizes estão ali e muitas vezes o público passa sem perceber o engano. É, então, que volta a questão principal. Não é a toa que ele escolheu um palco de um teatro. O limiar do real sempre foi uma questão em seus filmes. Pois ao estar diante de uma câmera, qualquer pessoa, comum ou atriz, assume um papel. Estamos sempre encenando a nossa própria vida para os outros. Mesmo sendo verdadeiros, assumimos uma postura. E isso é que torna “Jogo de Cena” genial. Ouvir aquelas histórias nos faz viajar em nossas próprias, independente de ser real ou encenação.
Com “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho experimenta os limites dos gêneros, questionando e teorizando sem uma só fala a esse respeito. Ele constrói sua teoria apenas com imagens e montagem, deixando para o espectador o questionamento sobre o que está assistindo. Ou não. Porque por vezes não precisa exatamente ter uma definição acadêmica, mas ser um simples exercício do fazer. Não chega a ser um filme de ficção, nem pode ser considerado um documentário. Coutinho conseguiu expor algo que pode não ter uma definição exata, tal qual fez Wim Wenders em “O Quarto 666”, mas não deixou de marcar mais uma vez a história do cinema brasileiro.
*Esta crítica ficou em terceiro lugar no Concurso Estadual de Estímulo à Crítica de Artes, na categoria Audiovisual, promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) em 2011.
Jogo de Cena (Jogo de Cena, 2006 / Brasil)
Direção: Eduardo Coutinho
Duração: 105 min.
Provavelmente com esses questionamentos em mente, Eduardo Coutinho colocou um anúncio no jornal procurando mulheres com histórias interessantes. Diversas apareceram e ele as entrevistou em um teatro vazio. Depois, convidou atrizes, dentre elas, três famosas: Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra; e fez uma brincadeira de montagem, misturando ficção e realidade para expor sentimentos e contradições da alma feminina. Assim nasceu “Jogo de Cena”, seu sexto longametragem.
Eduardo Coutinho é o maior nome do cinema documentário do país. Não apenas pelo seu talento para contar histórias reais, mas pelo grande número de bons filmes que já fez. Começando por “Cabra Marcado para Morrer”, que, a princípio, seria uma ficção, passando por “Boca de Lixo”, “Edifício Master” e “Peões”. Sua capacidade de construir e descobrir situações interessantes fez com que fosse capaz de propor ir para o Nordeste filmar à procura de um tema interessante e ter total apoio para isso. Assim, surgiu “O Fim e o Princípio”, um belo documentário sobre uma família em um vilarejo nordestino.
Com “Jogo de Cena”, ele começou uma série de experimentos que já passou por “Moscou”, filme sobre os ensaios de uma peça de teatro, e sua obra mais recente, “As Canções”, em que dezoito pessoas contam quais canções marcaram as suas vidas, construindo uma espécie de musicoterapia em tela. Assim também é “Jogo de Cena”, onde atrizes e pessoas reais abrem suas vidas para as câmeras em um jogo fascinante.
Apesar de alguns detalhes de entrevistadas subindo as escadas e chegando ao palco, a maior parte do filme tem apenas um enquadramento. Em plano médio, uma mulher, sentada em uma cadeira, com a pláteia do teatro vazia ao fundo. Por vezes, fecha o plano em um close, ou abre um pouco mais. Porém, sem muita alteração. A questão em “Jogo de Cena” é saber o que é verdade e o que é encenação. Mas, o que é realmente verdade quando estamos na frente de uma câmera? Este, talvez, seja o maior questionamento. Principalmente, quando as atrizes expõem um pouco da própria experiência, mesmo que seja na preparação da cena, na preocupação do colírio de Marília Pêra, na dificuldade de Fernanda Torres que pede para repetir várias vezes (e tudo permanece no filme) ou a revolta de Andréa Beltrão por ter chorado.
A proposta do filme parece ser mesmo essa e apenas pelos rostos famosos fica um pouco mais fácil identificar mulheres verdadeiras, porém outras atrizes estão ali e muitas vezes o público passa sem perceber o engano. É, então, que volta a questão principal. Não é a toa que ele escolheu um palco de um teatro. O limiar do real sempre foi uma questão em seus filmes. Pois ao estar diante de uma câmera, qualquer pessoa, comum ou atriz, assume um papel. Estamos sempre encenando a nossa própria vida para os outros. Mesmo sendo verdadeiros, assumimos uma postura. E isso é que torna “Jogo de Cena” genial. Ouvir aquelas histórias nos faz viajar em nossas próprias, independente de ser real ou encenação.
Com “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho experimenta os limites dos gêneros, questionando e teorizando sem uma só fala a esse respeito. Ele constrói sua teoria apenas com imagens e montagem, deixando para o espectador o questionamento sobre o que está assistindo. Ou não. Porque por vezes não precisa exatamente ter uma definição acadêmica, mas ser um simples exercício do fazer. Não chega a ser um filme de ficção, nem pode ser considerado um documentário. Coutinho conseguiu expor algo que pode não ter uma definição exata, tal qual fez Wim Wenders em “O Quarto 666”, mas não deixou de marcar mais uma vez a história do cinema brasileiro.
*Esta crítica ficou em terceiro lugar no Concurso Estadual de Estímulo à Crítica de Artes, na categoria Audiovisual, promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) em 2011.
Jogo de Cena (Jogo de Cena, 2006 / Brasil)
Direção: Eduardo Coutinho
Duração: 105 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
A arte de documentar a ficção*
2012-05-20T09:30:00-03:00
Amanda Aouad
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