Mesmo tendo tantos anos, tenho preferido, então, falar dos filmes de Hitchcock nessa leva pós-Panorama de Cinema, tentando evitar spoilers, pois mais tolo que isso possa parecer para alguns. Dou aula e sei a quantidade de jovens que não conhecem a obra e acho que se os instigá-los a ir em busca dos filmes, é interessante que não saibam o seu final. Principalmente deste, que o mestre fez tanta questão de esconder, proibindo as pessoas de entrarem durante o filme, fazendo campanha para que ninguém revelasse o final e até mesmo comprando todos os exemplares da obra de Robert Bloch em que o filme foi baseado.
Para falar de Psicose é preciso falar também de outro conceito que envolve Hitchcock, a sua predileção pelo suspense ao horror. Como ele mesmo explicou para Truffaut em suas famosas entrevistas que viraram livro: no horror, o público toma susto junto com o personagem, enquanto que no suspense, o espectador sabe de algo e fica na expectativa do seu desenrolar. Deu até um exemplo de uma bomba embaixo de uma mesa, se a gente não sabe que ela está lá e de repente explode, é horror. Se a gente sabe e vai sendo construída a expectativa da explosão, é suspense.
Hitchcock gostava disso, de criar essa expectativa, de brincar com o público. Tanto que só utilizou uma única vez o recurso conhecido como "quem matou?" tão utilizado em narrativas policiais. Foi em Assassinato, filme ainda de sua fase inglesa, onde um bairro é atingido por um assassinato misterioso que envolve uma trupe de teatro e apenas no final ficamos sabendo quem foi o assassino.
Por que todas essas explicações, antes do filme em si? Porque Psicose nos traz um pouco de cada uma dessas questões. É um filme difícil para Hitchcock, onde ele precisava provar que ainda era capaz de surpreender, de trazer algo novo e conquistar novas plateias. Por isso, investiu tanta energia em sua divulgação, criando o manual para se assistir Psicose. E, no filme, ele brinca com essa questão do horror e do suspense. Nos deixando cúmplices e ao mesmo tempo nos enganado e surpreendendo.
Começamos o filme acompanhando Marion, somos cúmplices dela no desfalque, em sua fuga desorientada, no arrependimento e tentativa de retorno, até que somos surpreendidos por sua morte a um terço do filme. Ok, eu prometi sem spoilers, mas esse não é tão grave, conforme já explicitei, a cena do chuveiro é mais famosa que o próprio filme. A partir daí, somos cúmplices de Norman Bates, esse rapaz tímido que cuida da mãe doente e encobre suas barbaridades. Sabemos mais que os personagens, ainda que não saibamos tudo e que ainda sejamos surpreendidos no final.
Nesse jogo de suspense e símbolos, Hitchcock brinca em cena. Desde o princípio, quando abre a cena com Marion e o noivo Sam em um motel seminus. As cenas na estrada também são muito bem construídas, com elipses pautadas pelas luzes dos faróis dos carros que ditam o ritmo dos cortes, além das vozes overs da imaginação de Marion sobre o que que aconteceria quando encontrasse o noivo, ou sobre o que estaria acontecendo no escritório. Ficar em um plano próximo, olhando apenas o rosto preocupado da atriz, enquanto isso tudo acontece, cria efeitos de angustia na plateia, ajudando na imersão da trama.
Temos ainda a figura do policial da estrada, que em nenhum momento tira os óculos escuros, se tornando ainda mais ameaçador para a protagonista. É interessante como um simples objeto pode simbolizar tanto. Da mesma forma que os pássaros no Motel Bates simbolizam muito da personalidade do jovem rapaz. A conversa de Bates e Marion no escritório tendo atrás dela um quadro de uma flor, e atrás deles os vários pássaros empalhados demonstra o predador que é o personagem, ao mesmo tempo ameaçador, mas empalhado, tolhido pela mãe.
É notável também a forma como o mistério em torno da Sra. Bates é construído. Ouvimos sua voz, mas não a vemos, a não ser por sombras. Em determinado momento, quando tem que levá-la para o porão, por exemplo, a câmera se posiciona em um plongée aguardando a passagem dos personagens, sem que possamos distingui-la completamente. Isso também cria um efeito, além do motivo imaginado após o final, que é o mesmo dos óculos do guarda da estrada. Tememos o que não conhecemos, a Sra. Bates é uma sombra para nós, assim como é para o seu filho que a venera e teme.
Dentro de toda a concepção cênica, não podemos deixar de destacar ainda a atuação de Anthony Perkins como Normam Bates. Muito do fascínio deste personagem se deve também à alma que ele empregou, em suas atitudes minuciosas, no olhar perdido e até ingênuo, muitas vezes, e, claro, no descontrole na parte final. Ao contrário de John Gavin, que parece estar sempre posando para a câmera.
São todos esses pequenos detalhes que ajudaram a construir a aura de Psicose. Muitos amam, outros nem tanto. Um crítico amigo meu disse antes da sessão que considerava uma bobagem criada apenas para publicidade que, vista pela segunda vez, perde o sentido. Não concordo, apesar de também concordar hoje que não seja a obra-prima do diretor. Mas, é um filme que continua fascinante e que não me canso de redescobrir desde a primeira vez que vi, com apenas 10 anos de idade.
Psicose (Psycho, 1960 / EUA)
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Joseph Stefano
Com: Anthony Perkins, Janet Leigh, Vera Miles
Duração: 109 min.