Semana passada tivemos o prazer de conversar com o diretor da obra, Marcos Jorge. Cineasta que estudou na Itália e já fez filmes de sucesso de crítica e público como o curta-metragem O Encontro e o longa Estômago, o diretor define o seu cinema como a eterna busca por uma delicadeza onde possa ser autoral e ao mesmo tempo dialogar com o seu público. Delicado e inteligente, acompanhe como foi na íntegra essa conversa.
CinePipocaCult: Em suas obras percebe-se sempre uma marca autoral muito forte. Mesmo sendo uma adaptação de um autor tão característico quanto Jorge Amado, como você se colocou nesse filme?
Marcos Jorge: Quando eu fui convidado eu reli o romance e tive uma epifania, senti que daria um bom filme. Existia já um roteiro, escrito pelo Frank Pierson na década de 70, eu li esse roteiro que era quase um pastiche da obra de Jorge Amado, com outra pegada, de outro tempo. Então, eu pedi que eu reescrevesse o roteiro partindo do romance, esquecendo o roteiro que já havia sido feito. Eles aceitaram e o filme acabou sendo um projeto meu, porque eu também escrevi o roteiro. Escrever e dirigir é uma grande responsabilidade que você coloca “sua cara para bater”. Então, acabou sendo um projeto muito próximo de mim.
CPC: E como foi a adaptação do livro para tela? Você centrou no duelo dos dois personagens, tanto que se tornou o nome do filme, deixando muitas das histórias de fora, como você pensou isso?
MJ: Esse duelo é o cerne do livro. São mesmo no livro os personagens mais fortes. Mas, o livro tem muitos outros personagens e tem, inclusive, um nível narrativo a mais que eu não utilizei. Utilizei o nível narrativo do Vasco chegando em Periperi e do confronto dele com Chico. E o nível narrativo de 20 anos antes, que é o Chico contando a história do Vasco. Existia mais um nível narrativo de um cara pesquisando esse conflito. Esse nível tive que eliminar, senão seria uma série de televisão. Então, eu tive que concentrar muitas coisas, mas até nisso acho que eu fui fiel ao romance, porque nele o Vasco é o grande protagonista.
CPC: E como você definiria o Vasco?
MJ: O Vasco é um contador de histórias e um vendedor de ilusões. Assim como o Chico, ele é um contador de histórias como o Vasco. Só que como ele perdeu o trono dele para o forasteiro, ele acaba se tornando um buscador da verdade. Só que em nenhum momento, nem do livro, nem do filme, você tem certeza das coisas. E isso, no filme, eu deixei bastante claro, semeando algumas questões, porque a verdade simplesmente não existe. A verdade é aquilo que cada um procura.
CPC: E essa construção na própria mise-en-scène, em que ele vai contando as histórias e elas vão se misturando à cena?
MJ: Então, nisso eu levei às últimas consequências o romance. Porque no livro, o Jorge afirma que, quando Vasco contava suas histórias, os habitantes eram, de certa forma, levados àqueles mares do sul, aos cabarés. Por isso, no filme, eu quis ir às últimas consequências, colocando mudanças mágicas à medida que ele vai contando as histórias e que faz com que o público do Vasco se sinta nos lugares. E isso é uma constante representação que tem a ver com a construção da verdade e com a mentira também. O tempo todo eu também como autor, brinco com essa representação da verdade que o Vasco faz, que o Chico faz e que eu faço. E que, claro, o Jorge fez no romance.
CPC: Que tem a ver com o próprio jogo de contar histórias, da gente se transportar para dentro delas.
MJ: Isso, e quem é que não conta histórias em torno de si mesmo? Quem de nós nunca forçou um pouquinho, distorcendo os fatos para que fique mais adequado ao espectador? Nós todos somos Vasco.
CPC: Seus filmes normalmente tem uma carga dramática maior, mostrando a violência, uma atmosfera mais densa. E esse é um filme mais leve, se aproximando mais da comédia. Como foi a experiência?
MJ: Então, essa leveza , na verdade, é uma coisa que eu busco. Mesmo em Estômago, por mais triste e terrível que seja o ambiente, as coisas que acontecem, a violência que é praticada dos homens com eles mesmos, por ter a magia da fuga da comida existe uma certa leveza no modo como eu conto a história. Eu busco a leveza, busco a gentileza e busco a delicadeza. Esse filme é muito delicado, o ritmo, o pensamento dele. No entanto, assim como o romance tem algumas críticas lá dentro. Se você pensa em como o Vasco, segundo o Chico, virou Capitão da Marinha, a gente tem quase uma metáfora do país. Uma coisa muito atual, na verdade. Então, em todos os filmes eu busco diversos níveis de leitura. É um filme leve, um filme gostoso de ver, como uma boa viagem, mas que traz nuanças.
CPC: Você estudou na Itália e começou a trabalhar com filmes na Europa. Você definiria que seu estilo está mais próximo do europeu que da escola cinematográfica brasileira?
MJ: O Duelo, inclusive é um filme que em alguns momentos foi muito interessante porque o Joaquim (de Almeida, ator que faz o Vasco) tem uma cara européia. Então, frequentemente, quando eu enquadrava o Joaquim, em alguns espaços eu até comentei “parece que estou fazendo um filme europeu”. O filme é muito brasileiro, mas tem momentos que lembra a Europa. A Itália é sempre uma referência pra mim. Eu faço uma pequena citação na cena do poker aos westerns italianos, assim como nos créditos iniciais do filme, a la Tarantino (diretor Quentin Tarantino) Este filme é uma grande brincadeira com muita coisa dentro.
CPC: Você teve um grande elenco nas mãos, tanto em quantidade quanto em qualidade. Mas, a gente não pode deixar de citar a presença de José Wilker como o Chico, principalmente por causa do seu falecimento antes da estreia da obra. Queria que você falasse um pouco sobre isso.
MJ: Então, o Zé foi um dos dois atores que eu escolhi ainda antes de acabar o roteiro. O outro foi o Milton Gonçalves, eu queria fazer uma homenagem a ele. Eu criei um governador negro e pensei no Milton pela grandeza dele como ator. O Zé eu pensei porque ele tinha a cara do Chico Pacheco e ele tinha feito o Vadinho. Dois argumentos que me levaram a pensar nele. E também porque ele tinha uma grande voz e a segunda parte do filme era narrada pelo Chico. Ou seja,o vozerão dele ia me ajudar no processo de construção. E ele leu o roteiro e topou rapidamente, gostou muito do roteiro. E embarcou no filme com todas as energias, foi excelente trabalhar com ele. A última vez que o vi foi dez dias antes do falecimento dele, para dublar umas coisinhas que eu precisava dublar. E foi maravilhoso passar com eles essas horas dentro e fora do set, porque ele é uma pessoa muito inteligente, muito divertida, sarcástico como a maioria das pessoas inteligentes. Então, ser depositário desse testamento dele é uma responsabilidade, mas que me deixa muito honrado.
CPC: Este filme foi realizado em 2012 e este ano ainda você lança mais uma obra, certo?
MJ: Eu lanço no segundo semestre um filme chamado Mundo Cão, os protagonistas são Lázaro Ramos, Adriana Esteves e Babu Santana. A história se passa em 2007/2008. Não é um filme violento, mas é uma história sobre a violência urbana. E é a história de um laçador de cães por desventuras de seu trabalho se indispõe com um bandido e é um suspense. Ali também é uma mistura de gêneros, que você falou muito bem, O Duelo é uma comédia, é um drama e é um filme de fantasia. O Mundo Cão começa como uma comédia, depois vira um drama e depois descamba em um suspense pesado. Pesado no sentido de tema, mas com uma certa leveza.
CPC: A leveza é sempre sua busca, então?
MJ: Não sei se leveza é a palavra, pois elas também trazem conotações que a gente não controla. Mas, a delicadeza. Eu gosto da ideia de ser delicado com meu público. Eu nunca subestimo o meu público. O Duelo, inclusive, é um filme que eu superestimo o público. Para você acompanhar as conexões internas da história, que são tantas, eu acho muito difícil que o espectador médio na primeira visão do filme vá entender completamente, as coisas que voltam, os personagens. Mas, mesmo ele não percebendo tudo, vai curtir o filme assim mesmo. Então, essa delicadeza que eu busco é no tato com os personagens. Eu estava até pensando hoje que uma das coisas que caracteriza a literatura de Jorge Amado é a compaixão que ele tinha com seus personagens, mesmo os que não eram bons, os vilões. E eu tenho a mesma coisa com os meus personagens. Isso que eu acho que traz uma certa delicadeza.
CPC: E como você vê o cinema nacional, hoje?
MJ: Cinema nacional, difícil, né? Não o cinema nacional em si, a gente tem uma pluralidade de filmes, mas acho que a gente ainda está tateando no caminho que é o que eu busco de fazer bons filmes para o público. Então, a gente faz filmes pro público e filmes autorais. Eu quero fazer as duas coisas juntas. Aliás, quando eu falo da leveza é um pouco dessa tentativa. De fazer uma coisa inteligente, articulada, complexa, mas que acessível a todo o público. Talvez isso falte um pouco no cinema nacional hoje. Mas, acho que está evoluindo, ao mesmo tempo aumenta as dificuldades, a burocracia, dos quais a gente sempre se queixa. E falta uma política de diretor. Leva cinco anos pra fazer um filme e não dá para construir uma carreira assim. E fazer uma filmografia sólida dessa maneira. Então, acho que hoje o que falta é uma política de diretores, que apoie o diretor.