Tentei
Há uma força imensa na palavra, mas por vezes o não dito consegue ser tão ou mais potente. A protagonista Glória do curta-metragem Tentei de Lais Melo quase não fala em cena, mas seu corpo e expressões dizem tudo. A começar pelo primeira frase da obra que a traz encolhida em um canto da cama enquanto seu marido se espalha pela mesma.
Quando se fala em violência doméstica, muitos colocam a “culpa” na mulher por suportar aquilo. “Por que ela não denuncia?” Perguntam alguns. O filme de Lais Melo dá um vislumbre de resposta. É difícil, quase tão doloroso quando sofrer a violência estar ali em uma delegacia e tudo o que isso acarreta. “Você tem como provar?” É a pergunta em voga e isso também carrega consigo uma palavra de ordem que ecoa na mente das milhares de mulheres que sofrem algum tipo de violência
Tentei é um grito rouco, mas que se potencializa de uma maneira impressionante em seu desfecho, nos desconcertando na cadeira. Méritos da equipe e mérito da atriz Patrícia Saravy, que preenche a tela com sua dor. Sem dúvidas Glória não apenas tentou, ela conseguiu algo em nós.
Tentei (Tentei, Brasil / 2017)
Direção: Laís Melo
Roteiro: Laís Melo
Com: Patricia Saravy, Richard Rebelo, Carlos Henrique Hique Veiga, Jannie Mathias
Duração: 15 min.
A Passagem do Cometa
Dialogando com o curta-metragem Tentei, A Passagem do Cometa, de Juliana Rojas, trabalha de outra maneira uma questão feminina polêmica e de necessária discussão: o aborto.
Ambientada em uma clínica clandestina na década de 80, o filme não problematiza ser certo ou errado o ato, nem mesmo o motivo que levou aquelas pacientes a tomarem a decisão de procurar o procedimento. Sororidade é a palavra de ordem. Mulheres acolhendo mulheres em um momento tão difícil, lhes permitindo ser donas de seu corpo. Talvez por isso a frase da personagem de Ivy Souza ao acordar soe tão forte: não parece meu corpo.
Utilizando a metáfora da passagem do cometa Haley pelo céu como uma simbologia de possível mudança, o filme acaba deflagrando o quanto ainda não avançamos, ou até mesmo retrocedemos, em algumas questões de gênero. Juliana Rojas constrói um espaço de acolhimento, com uma médica atenciosa e cuidados de higiene e saúde, porém quantas mulheres recorrem a clínicas insalubres, arriscando a vida em diversos níveis? Independente de ser contra ou a favor do aborto, o que o filme nos mostra é a necessidade de empatia para com aquelas mulheres.
A diretora é hábil em construir isso em pequenos gestos, um olhar, uma mão segurando outra, mesmo uma ajuda nas palavras cruzadas. Há uma união tácita que deixa tudo mais leve, ainda que nunca fácil. O que nos faz destacar a atuação das atrizes sempre em um tom correto, nunca menos nem over. A animação que surge no ponto chave também merece destaque pela plástica e simbologia.
Questões de gênero e raça foram as principais pautas do Festival, onde o afeto foi evocado em diversos níveis. A Passagem do Cometa e Tentei acabam construindo um diálogo urgente sobre a mulher em nossa sociedade. Uma, só, a outra, amparada. Que não esperemos a nova passagem do cometa para mudar essa realidade.
A Passagem do Cometa (A Passagem do Cometa, Brasil/ 2017)
Direção: Juliana Rojas
Roteiro: Juliana Rojas
Com: Gilda Nomacce, Ivy Souza, Mariza Junqueira, Nana Yazbeck, Helena Albergaria
Duração: 19min.
Filmes vistos no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.