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Onda Nova
Onda Nova
Onda Nova (1983) é uma daquelas obras que parecem existir em um espaço-tempo peculiar, onde o desejo de transgressão e a vontade de questionar convenções sociais se encontram em perfeita harmonia. Dirigido pela dupla José Antônio Garcia e Ícaro Martins, o filme é um exemplar notável do cinema da Boca do Lixo, uma região em São Paulo conhecida por produções de baixo orçamento que ousavam tratar de temas marginalizados. Onda Nova segue essa tradição com uma ousadia surpreendente, transitando entre a pornochanchada e uma comédia anárquica que desafia normas de gênero e sexualidade em plena ditadura militar.
O filme tem como ponto de partida a história das jogadoras do Gayvotas Futebol Clube, uma equipe fictícia de futebol feminino em um Brasil onde o esporte para mulheres havia sido proibido por 40 anos. O futebol feminino só foi regulamentado em 1983, justamente o ano de lançamento do filme, o que confere ao longa um caráter simbólico: ele não apenas narra a resistência das personagens à opressão machistas, mas também se insere em um contexto histórico de luta pela autonomia feminina. Esse pano de fundo permite a Onda Nova misturar temas de liberdade sexual, identidade de gênero e resistência à censura, fazendo com que o filme se torne mais do que uma simples comédia erótica.
As atuações em Onda Nova são um deleite à parte. Carla Camurati e Cristina Mutarelli, como as protagonistas do time, trazem uma energia vibrante às suas personagens. Mutarelli, especialmente, dá vida a Lindóia, uma goleira que, apesar de rechonchuda e desbocada, se destaca como o coração pulsante do time. O filme a apresenta como um símbolo de resistência a padrões de feminilidade impostos pela sociedade da época. Sua relação com os personagens masculinos Ruy e Marcelo, um trisal subversivo, revela uma abordagem corajosa sobre o desejo e as nuances da sexualidade. Embora essa relação não seja mostrada explicitamente, a mera menção a ela já carrega um peso significativo em um cinema brasileiro dominado por moralismos.
Camurati, por sua vez, brilha em momentos mais contidos, mas igualmente impactantes, representando uma geração de jovens mulheres que, ao mesmo tempo em que são vistas como objetos de desejo, se recusam a desempenhar os papéis que lhes foram impostos. Sua presença no filme também é um indicativo da confiança dos diretores em elencar nomes que, mais tarde, se tornariam referências do cinema brasileiro. Ao lado das protagonistas, o filme conta com participações especiais curiosas, como Casagrande e Wladimir, ícones do futebol brasileiro, e Caetano Veloso, em uma paródia de si mesmo.
Os pontos altos de Onda Nova são, sem dúvida, sua habilidade em transitar entre o humor escrachado e um comentário social mais profundo. A Boca do Lixo sempre foi um terreno fértil para esse tipo de hibridização, mas Garcia e Martins parecem especialmente atentos à forma como o desejo sexual pode ser uma força de resistência. Outro ponto a se destacar é o modo como o filme faz referência ao contexto histórico de sua produção. Em plena ditadura militar, qualquer filme que falasse de desejo, gênero ou sexualidade estava, de alguma forma, desafiando a ordem vigente. Embora Onda Nova não trate diretamente de política, a própria existência de um filme como esse, repleto de cenas de nudez, sexualidade e comédia irreverente, já era um ato de resistência. Não é à toa que a produção enfrentou censura e teve seu lançamento adiado em quase um ano, o que prejudicou sua trajetória comercial.
Apesar de seus méritos, Onda Nova tem suas falhas. O roteiro, escrito pela própria dupla de diretores, carece de uma maior coesão narrativa em alguns momentos. As sequências de gags, embora divertidas, às vezes parecem desarticuladas e desconectadas do enredo principal. Isso enfraquece o ritmo do filme, que por vezes se perde em uma estrutura episódica. Além disso, o excesso de referências culturais dos anos 80, como as menções a James Dean, Chacrinha e Michael Jackson, embora fascinantes para um público familiarizado com a época, acabam datando a obra, mas é justamente essa colcha de retalhos de referências pop que dá ao filme um charme caótico. A estética kitsch da época cria uma atmosfera que é ao mesmo tempo nostálgica e provocativa. A trilha sonora, com vocalizes de Cyda Moreira e Tânia Alves, reforça essa sensação de que estamos em um mundo à parte, onde as convenções sociais são deliberadamente subvertidas em nome do prazer e da liberdade.
Em resumo, Onda Nova é uma obra de resistência, um filme que, apesar de suas limitações narrativas, consegue provocar, divertir e questionar. O projeto de restauração liderado por Julia Duarte trouxe um novo fôlego ao filme em 2024, com relançamento no Festival de Locarno, permitindo que novas gerações redescubram uma obra que, apesar de ter sido marginalizada em seu tempo, tem muito a dizer sobre liberdade, desejo e a constante luta contra o conformismo. Onda Nova é um lembrete de que o cinema, especialmente em tempos de opressão, pode ser uma arma poderosa — mesmo quando disfarçado de comédia.
Onda Nova (1983 / Brasil)
Direção: Icaro C. Martins, José Antonio Garcia
Roteiro: Icaro C. Martins, José Antonio Garcia
Com: Carla Camurati, Tânia Alves, Walter Casagrande, Vera Zimmermann, Caetano Veloso, Regina Casé, Cristina Mutarelli
Duração: 102 min.
Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Onda Nova
2024-11-11T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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