Anora
Em 1990, Uma Linda Mulher reconfigurou o conto de fadas de Cinderela ao nos apresentar um romance entre uma prostituta e um empresário de sucesso. Apesar de todas as improbabilidades da situação, torcemos e vibramos com o casal Vivian e Edward. De alguma maneira, Sean Baker parte dessa premissa, até brinca com isso quando Anora diz a amiga que quer passar a lua de mel na Disney hospedada no quarto de Cinderela. Mas a proposta do cineasta não é ficar na superfície do que seria uma bela história de amor fantasiosa.
Anora, ou Ani, como ela prefere, é um dançarina erótica que atende a um cliente especial em uma noite. Ivan, um herdeiro de um oligarca russo que está nos Estados Unidos para se divertir. Não demora, ele contrata a garota para ser sua acompanhante exclusiva. Entre festas, sexo e diversão, ele acaba pedindo-a em casamento, fazendo a garota acreditar que encontrou seu príncipe encantado. Porém, quando a notícia chega à família na Rússia, esse conto de fadas desmorona e vemos uma sucessão de absurdos até o desfecho previsível.
É curioso como o roteiro do próprio Baker é dividido de maneira clara nas duas partes. O tom, o ritmo, a progressão dramática da leve primeira parte, contrasta com a tensão da segunda, se levarmos em conta o ponto de vista de Ani. Se deslocando da visão da protagonista, é possível embarcar no riso da sátira, em uma estrutura que lembra a comédia de absurdo, mas que beira ao mal gosto, como a cena em que os capangas amarram e prendem a garota na casa.
A direção também segue essa estrutura farsesca diferenciando a primeira da segunda parte. Ainda que nunca prometa um conto de fadas de fato, é possível ser otimista com o ritmo do início. Há, no entanto, uma inconsequência generalizada na rotina daquele garoto herdeiro que nos faz perceber que não pode durar. Não há um objetivo de vida além de bebidas, drogas, sexo e diversão. Isso nos dá uma sensação também de cansaço e falta de objetivo na obra, que parece só engatar de fato, na segunda etapa.
Ao contrário de Projeto Flórida, que nos apresenta a realidade dura daquelas pessoas à margem do parque dos sonhos, aqui, Sean Baker foca no privilégio daqueles que cercam o herdeiro e podem usufruir de tudo que ele pode proporcionar. É nesse microcosmo que Anora se torna a Cinderela às avessas. Ingênua ao extremo para uma menina que trabalha em um local como o QG, ela se sustenta pela boa construção da atriz Mikey Madison que nos faz crer ser possível acreditar até o último momento na possibilidade daquele sonho.
Destaque ainda para Yura Borisov que interpreta talvez o personagem mais instigante da trama, o capanga Igor. As camadas de sua personagem são aprofundadas com grande habilidade a partir das suas expressões. É possível compreender desde o início que é diferente dos outros. Há uma humanidade nele que contrasta com todo aquele caos estabelecido. É o contraponto da razão em um cenário no qual o absurdo predomina.
Há, também, de alguma maneira, uma certa leviandade ao retratar o trabalho de mulheres que vivem do sexo. Como se tudo se resumisse a isso. Única forma delas se relacionarem com o mundo. Tudo bem se divertir e não ter pudores para explorar essas relações, mas em determinado momento, parece que Anora se torna apenas isso, uma personagem rasa. Não temos mais nada a respeito da garota, seus sonhos, suas habilidades, seus desejos para além daquela vida. Nem mesmo conversas com outros temas ou hobbies. Ivan, pelo menos, tem o videogame como atividade “extra”.
Vencedor da Palma de Ouro de 2024, Anora é um filme que flerta com a farsa, ainda que acabe em uma crítica social vazia que não pretende discutir de fato aquela situação. A proposta é apenas chocar e fazer graça com os absurdos. Tem seu charme, mas também não é tudo isso para tanta aclamação.
Anora (EUA, 2025)
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker
Com: Mikey Madison, Mark Eydelshteyn, Yura Borisov, Karren Karagulian, Vache Tovmasyan, Darya Ekamasova
Duração: 139 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Anora
2025-01-21T13:25:00-03:00
Amanda Aouad
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