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Gêmeas
Gêmeas
Andrucha Waddington estreou na direção de longas-metragens com Gêmeas (1999), uma adaptação do conto homônimo de Nelson Rodrigues, que integra a coletânea A Vida Como Ela É. Mesmo sendo seu primeiro filme, Waddington já demonstrava um traço estético marcado pelo rigor técnico, resultado direto de sua sólida experiência com publicidade e videoclipes. Essa influência transparece de forma evidente em Gêmeas, um filme que transita entre o suspense psicológico e o drama gótico, enquanto explora as nuances sombrias das relações humanas.
O enredo, embora simples, carrega a densidade típica das histórias de Rodrigues. Somos apresentados às irmãs Marilena e Iara, interpretadas de forma notável por Fernanda Torres, cuja atuação é um dos pilares do filme. Marilena, a mais recatada, e Iara, a provocadora, compartilham um hábito inquietante: trocam de lugar para confundir os homens com quem se envolvem. A premissa, que inicialmente parece brincalhona, logo se revela um terreno fértil para o ciúme, a obsessão e, inevitavelmente, a tragédia. A duplicidade das irmãs é tratada com uma intensidade que reflete a marca registrada de Nelson Rodrigues: os desejos reprimidos e as complexas dinâmicas familiares em um cenário de moralidade distorcida.
Fernanda Torres se entrega completamente às duas personagens, evidenciando as diferenças sutis entre elas através de gestos, expressões e entonações. No entanto, sua performance, embora elogiável, às vezes pende para o exagero, o que pode ser atribuído ao tom teatral do texto rodrigueano. Em contrapartida, Evandro Mesquita, como o ingênuo taxista Osmar, entrega uma atuação discreta, mas funcional, servindo como catalisador da rivalidade entre as irmãs. Destaque também para Francisco Cuoco e Fernanda Montenegro, que, apesar de participações breves, conseguem transmitir com eficácia a carga dramática de uma família disfuncional.
A direção de arte e a fotografia são inegavelmente os aspectos mais memoráveis de Gêmeas. O trabalho de Breno Silveira, responsável pela fotografia, é marcado por tons opacos e sombras que evocam uma atmosfera de decadência e isolamento, enquanto o design de produção de Gualter Gupo reforça o sentimento de abandono que permeia o filme. A casa onde grande parte da narrativa se desenrola é quase um personagem por si só: suas paredes desgastadas, móveis antigos e iluminação sombria servem como um espelho do estado emocional dos personagens. Essas escolhas estéticas remetem ao expressionismo alemão e ao noir, estilos que influenciam a forma como o suspense é construído.
A trilha sonora desempenha um papel fundamental no desenvolvimento da tensão. A música cresce em momentos-chave, intensificando o desconforto e anunciando os eventos trágicos que se desenrolam. Essa construção sonora, embora eficiente, por vezes parece excessivamente calculada, quase como se o filme quisesse sublinhar suas intenções de maneira explícita demais.
A transição de Andrucha Waddington da publicidade para o cinema é evidente na precisão técnica de Gêmeas. Cada enquadramento parece milimetricamente planejado, cada movimento de câmera, cuidadosamente coreografado. Essa abordagem, embora visualmente impactante, acaba criando uma certa frieza emocional. O filme carece de uma espontaneidade que poderia torná-lo mais visceral e envolvente. É como se Waddington estivesse mais preocupado em construir um portfólio técnico impecável do que em explorar plenamente as possibilidades dramáticas do texto de Rodrigues.
Outro ponto que merece atenção é o ritmo do filme. Gêmeas tem uma duração que, paradoxalmente, parece tanto curta quanto longa demais. A sensação é de que a história foi esticada para se adequar ao formato de longa-metragem, o que resulta em uma quebra de ritmo que prejudica o impacto emocional. Ainda assim, Gêmeas não deixa de ser um esforço interessante dentro da cinematografia brasileira e foge da dicotomia sertão-favela que tantas vezes marcou o cinema nacional, propondo um estudo de personagens em um ambiente urbano claustrofóbico e carregado de simbolismos. Além disso, é uma adaptação fiel ao espírito de Nelson Rodrigues, capturando a complexidade moral e os temas de desejo, culpa e morte que permeiam sua obra.
Entre os momentos marcantes do filme, a cena em que Marilena descobre que Iara está costurando dois vestidos de noiva idênticos é um exemplo brilhante de como o roteiro utiliza objetos para simbolizar os conflitos emocionais. É uma sequência que é um resumo do ciúme e da rivalidade entre as irmãs, preparando o terreno para o desfecho trágico. Outro destaque é o enterro da mãe das gêmeas, filmado com uma paleta azulada e uma mise-en-scène que remete diretamente ao gótico, criando uma atmosfera de luto e presságio.
Em resumo, Gêmeas é uma obra tecnicamente primorosa, mas emocionalmente contida, que reflete tanto os pontos fortes quanto as limitações de Andrucha Waddington como um cineasta ainda estreante. Com um elenco de peso e uma história rica em subtexto, o filme entrega momentos de grande impacto visual e narrativo, mas não consegue sustentar o mesmo nível de intensidade ao longo de sua curta duração. Ainda assim, é uma adaptação digna do universo de Nelson Rodrigues, oferecendo ao público uma experiência envolvente e perturbadora que, apesar de suas falhas, merece ser lembrada como um marco na carreira de Waddington e uma contribuição significativa para o cinema brasileiro.
Gêmeas (1999 / Brasil)
Direção: Andrucha Waddington
Roteiro: Elena Soarez
Com: Fernanda Torres, Evandro Mesquita, Fernanda Montenegro, Caio Junqueira, Matheus Nachtergaele, Francisco Cuoco
Duração: 105 min.
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Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Gêmeas
2025-02-19T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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