Grandes Cenas: E o Vento Levou...
A cena selecionada de hoje é um dos maiores clichês do cinema, mas é um dos maiores clichês do cinema exatamente por ser uma das melhores cenas do cinema. E o vento levou é um clássico épico que consegue emocionar ainda hoje, quase 70 anos após o seu lançamento. Como disse Pablo Villaça, uma pena que ele não tenha sido produzido na época do Cinemascope, sua grandiosidade perdeu muito com a janela 4:3. Ainda assim, os cenários e enquadramentos impressionam, nem parece que teve tantos problemas fazendo rodízio entre vários diretores e roteiristas.
Para quem não conhece o filme, conta a história do Sul dos Estados Unidos e sua derrocada após a Guerra de Secessão americana, focado na trajetória da heroína Scarlett O´Hara. Uma civilização, como diz o texto inicial, "que o vento levou". A cena escolhida é exatamente a última da primeira parte do filme, que tem quase quatro horas de duração. Scarlett volta a sua fazenda Tara fugindo da guerra e encontra a terra destruída, sua mãe morta, seu pai louco e suas irmãs perdidas. Cansada, com fome, sem esperança ela corre até o campo destruído, retira um tubérculo qualquer da terra e declama uma promessa aos céus de jamais passar fome novamente.
Algum desavisado que assiste apenas a essa cena pode até se incomodar com o texto, afinal como vibrar com alguém que diz que vai matar, roubar, mentir? Mesmo assim, se emociona com a música imponente, o desespero da personagem, magistralmente interpretada por Vivien Leigh, e com o instinto de sobrevivência inerente a todo ser humano. Ela está passando fome, mas não desiste, vai lutar para vencer as dificuldades. Isso por si só já seria motivo.
Acontece que tem mais. O espectador já está acompanhando a trajetória de Scarlett há duas horas e viu sua transformação de menina mimada em mulher forte. Ao chegar em Tara, ele já vê o mundo através de Scarlett. A narrativa está colada em sua protagonista, porque só assim o espectador irá sentir o mesmo crescente de emoção que ela. É como se o público também estivesse perdido, procurando seu porto seguro.
A sucessão de acontecimentos gradativa vai configurando a realidade. A heroína está só, rodeada de pessoas doentes ou perdidas, precisando de alguém que as salve. O espectador, totalmente entregue àquele drama, deseja que Scarlett sobreviva, encontre uma solução para sua vida. Após todo o percurso que passaram juntos, ele está pronto para ouvir Scarlett dizer: "Com Deus por testemunha não vão me derrotar. Vou sobreviver a isso e quando passar nunca mais sentirei fome. Nem eu, nem minha família. Mesmo que eu minta, roube, trapaceie ou mate. Com Deus por testemunha. Nunca mais passarei fome."
Fora toda a carga dramática da narrativa, a cena é bem conduzida, principalmente levando em conta a época em que foi feita. Vemos Scarlett olhando desolada para terra, seguida de uma subjetiva com a fazenda seca, destruída. A câmera volta para Scarlett e ela vai andando de cabeça baixa. A cena é bastante escura, apenas a sinueta de Scarlett é vislumbrada, o céu avermelhado do crepúsculo. Ela chega em um determinado ponto e pega algo no chão. Corta para o plano detalhe do rabanete sendo tirado da terra, ela mal limpa e coloca na boca, no desespero da fome. Morde um pedaço e chora, passando mal provavelmente com o gosto. Scarlett se joga no chão e seu corpo fica confundido com a terra, quase uma coisa só, tendo o céu avermelhado acima. Detalhe que a música está em B.G. o tempo todo, nesse momento um efeito da orquestra prepara o espectador para o momento crucial.
Scarlett levanta a cabeça, olhando para o céu, diz o seu juramento com a câmera em close nela. Após a última frase, o B.G. sobe, enchendo a cena com a música tema e a câmera vai se afastando até que Scarlett seja um ponto no meio da fazenda destruída. Percebam que para afastar a câmera mantendo Scarlett pequena no centro, como a tela era na proporção 4:3, teve que ser exposto uma quantidade de céu muito grande, se fosse hoje com a tela mais retangular, seria possível mostrar mais da fazenda. Ainda assim é um quadro bem composto, inesquecível.
Não é de se surpreender que toda vez que essa cena é exibida, há uma comoção e todos conseguem se lembrar dela ao falar de grandes cenas do cinema. Esse post de hoje é em homenagem a minha mãe que me apresentou esse filme quando eu ainda era criança e me fez admirá-lo.
Para quem não conhece o filme, conta a história do Sul dos Estados Unidos e sua derrocada após a Guerra de Secessão americana, focado na trajetória da heroína Scarlett O´Hara. Uma civilização, como diz o texto inicial, "que o vento levou". A cena escolhida é exatamente a última da primeira parte do filme, que tem quase quatro horas de duração. Scarlett volta a sua fazenda Tara fugindo da guerra e encontra a terra destruída, sua mãe morta, seu pai louco e suas irmãs perdidas. Cansada, com fome, sem esperança ela corre até o campo destruído, retira um tubérculo qualquer da terra e declama uma promessa aos céus de jamais passar fome novamente.
Algum desavisado que assiste apenas a essa cena pode até se incomodar com o texto, afinal como vibrar com alguém que diz que vai matar, roubar, mentir? Mesmo assim, se emociona com a música imponente, o desespero da personagem, magistralmente interpretada por Vivien Leigh, e com o instinto de sobrevivência inerente a todo ser humano. Ela está passando fome, mas não desiste, vai lutar para vencer as dificuldades. Isso por si só já seria motivo.
Acontece que tem mais. O espectador já está acompanhando a trajetória de Scarlett há duas horas e viu sua transformação de menina mimada em mulher forte. Ao chegar em Tara, ele já vê o mundo através de Scarlett. A narrativa está colada em sua protagonista, porque só assim o espectador irá sentir o mesmo crescente de emoção que ela. É como se o público também estivesse perdido, procurando seu porto seguro.
A sucessão de acontecimentos gradativa vai configurando a realidade. A heroína está só, rodeada de pessoas doentes ou perdidas, precisando de alguém que as salve. O espectador, totalmente entregue àquele drama, deseja que Scarlett sobreviva, encontre uma solução para sua vida. Após todo o percurso que passaram juntos, ele está pronto para ouvir Scarlett dizer: "Com Deus por testemunha não vão me derrotar. Vou sobreviver a isso e quando passar nunca mais sentirei fome. Nem eu, nem minha família. Mesmo que eu minta, roube, trapaceie ou mate. Com Deus por testemunha. Nunca mais passarei fome."
Fora toda a carga dramática da narrativa, a cena é bem conduzida, principalmente levando em conta a época em que foi feita. Vemos Scarlett olhando desolada para terra, seguida de uma subjetiva com a fazenda seca, destruída. A câmera volta para Scarlett e ela vai andando de cabeça baixa. A cena é bastante escura, apenas a sinueta de Scarlett é vislumbrada, o céu avermelhado do crepúsculo. Ela chega em um determinado ponto e pega algo no chão. Corta para o plano detalhe do rabanete sendo tirado da terra, ela mal limpa e coloca na boca, no desespero da fome. Morde um pedaço e chora, passando mal provavelmente com o gosto. Scarlett se joga no chão e seu corpo fica confundido com a terra, quase uma coisa só, tendo o céu avermelhado acima. Detalhe que a música está em B.G. o tempo todo, nesse momento um efeito da orquestra prepara o espectador para o momento crucial.
Scarlett levanta a cabeça, olhando para o céu, diz o seu juramento com a câmera em close nela. Após a última frase, o B.G. sobe, enchendo a cena com a música tema e a câmera vai se afastando até que Scarlett seja um ponto no meio da fazenda destruída. Percebam que para afastar a câmera mantendo Scarlett pequena no centro, como a tela era na proporção 4:3, teve que ser exposto uma quantidade de céu muito grande, se fosse hoje com a tela mais retangular, seria possível mostrar mais da fazenda. Ainda assim é um quadro bem composto, inesquecível.
Não é de se surpreender que toda vez que essa cena é exibida, há uma comoção e todos conseguem se lembrar dela ao falar de grandes cenas do cinema. Esse post de hoje é em homenagem a minha mãe que me apresentou esse filme quando eu ainda era criança e me fez admirá-lo.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Grandes Cenas: E o Vento Levou...
2009-08-28T17:35:00-03:00
Amanda Aouad
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