Almas à Venda
"A alma fica em uma pequena glândula localizada no meio do cérebro". René Descartes - As paixões da alma, 1649.
Pegando carona no pensamento de Descartes, Sophie Barthes criou uma comédia surreal em um mundo imaginário onde é possível arquivar, vender e alugar almas alheias. Assim como em Quero ser John Malkovich, temos aqui Paul Giamatti interpretando a si mesmo em uma aventura insólita pelos mistérios da mente humana. As semelhanças terminam por aí, mas nem por isso deixa de ser também uma história interessante.
Paul Giamatti é um ator em crise. Há uma angústia intensa em seu íntimo que o está impedindo de interpretar seu novo papel na peça Tio Vânia de Tchekhov. É quando ele encontra um anúncio em uma revista falando do banco de almas e resolve conhecer o local. Lá, o Dr. Flinstein, vivido por David Straithairn o convence de que o problema é sua alma, que é inquieta como um tumor em seu corpo. Paul resolve, então, se submeter a extração da alma. O problema é que ao mesmo tempo em que se sente mais leve, ele também perde a capacidade emotiva. E como ser um ator sem emoção? Ele até tenta alugar outra alma, mas quando vai procurar a sua novamente, complicações aparecem.
O filme é construído a partir de vários simbolismos. A começar pela relação entre corpo, alma e emoções. Explicando o que nos aprisiona, Dr. Flinstein se utiliza da história do elefante que por aprender quando pequeno que não tem forças para se soltar de sua corda, ao crescer ele nem tenta mais. É assim, segundo a realidade do filme de Sophie Barthes, que também assina o roteiro, que nos sentimos em relação à nossa alma. Ela nos aprisiona. Mas, é também nossa fonte emocional. Inspiração de reações e sensibilidades diversas. Basta observar a forma como Paul fica após extrair sua alma, não sendo capaz nem mesmo de compreender o momento delicado pelo qual uma amiga estava passando. Tudo se torna razão.
O simbolismo mais interessante que Almas à Venda traz é a forma como o banco de almas aumenta seu estoque. Nina, a russa empregada da empresa, transita da Rússia para os Estados Unidos traficando almas de pobres conterrâneos que a vendem por alguns trocados. Basta lembrar da Guerra Fria para entender o quão rica é essa construção. A empobrecida e sonhadora Rússia alimentando o rico Estados Unidos desalmado. - Aqui vai um certo spoiler, então, pule o parágrafo. - Não por acaso Paul só consegue resolver seu problema quando aluga uma alma de um poeta russo. Quem melhor para entender um personagem criado por um russo, senão um poeta de mesma nacionalidade?
A fotografia é bem trabalhada. O cenário do laboratório é todo branco, limpo, com cores lavadas. O padrão se segue nas visualizações da alma, sempre com profundidade de campo pequena. Ao contrário do dia a dia normal, onde as cores são fortes e saturadas, abusando da diversidade. Em uma cena, Paul aparece em um banheiro com paredes pretas, demonstrando o peso que está em sua vida. A sequência do hotel também abusa do vermelho, sempre dando esse tom carregado, complicado. A direção de arte é rica em detalhes, construindo bem os ambientes que indicam um pouco da personalidade dos personagens. O Dr. Flinstein aparece naquele ambiente asseado, com roupas limpas e atmosfera leve, comendo uma noz. Quer estranhamento maior? Aquele objeto duro, incomum no dia a dia, sendo quebrado ali no meio da consulta acaba desviando nossa atenção para o verdadeiro estranhamento da cena que é alguém ser capaz de extrair sua alma.
Paul Giamatti consegue construir a si mesmo de uma forma rica, convincente, tendo diferença dele no início, para quando está sem alma, ou utilizando alguma alma alheia. Dina Korzun também merece destaque como Nina, tendo uma personagem ainda mais completa em sua construção e revelações que vão nos sendo passadas aos poucos. Mas, David Strathairn acaba não conseguindo passar verdade com Dr. Flintstein.
Almas à Venda no geral é um filme instigante e bem realizado. Mas, é preciso comprar a realidade que Sophie Barthes constrói. Senão, tudo soará estranho demais, sem sentido até. É uma experimentação, uma viagem pela capacidade humana de conectar corpo e alma.
Almas à Venda (Cold Souls: 2009 / EUA)
Direção: Sophie Barthes
Roteiro: Sophie Barthes
Com: Paul Giamatti, Armand Schultz, David Strathairn, Dina Korzun.
Duração: 101 min.
Pegando carona no pensamento de Descartes, Sophie Barthes criou uma comédia surreal em um mundo imaginário onde é possível arquivar, vender e alugar almas alheias. Assim como em Quero ser John Malkovich, temos aqui Paul Giamatti interpretando a si mesmo em uma aventura insólita pelos mistérios da mente humana. As semelhanças terminam por aí, mas nem por isso deixa de ser também uma história interessante.
Paul Giamatti é um ator em crise. Há uma angústia intensa em seu íntimo que o está impedindo de interpretar seu novo papel na peça Tio Vânia de Tchekhov. É quando ele encontra um anúncio em uma revista falando do banco de almas e resolve conhecer o local. Lá, o Dr. Flinstein, vivido por David Straithairn o convence de que o problema é sua alma, que é inquieta como um tumor em seu corpo. Paul resolve, então, se submeter a extração da alma. O problema é que ao mesmo tempo em que se sente mais leve, ele também perde a capacidade emotiva. E como ser um ator sem emoção? Ele até tenta alugar outra alma, mas quando vai procurar a sua novamente, complicações aparecem.
O filme é construído a partir de vários simbolismos. A começar pela relação entre corpo, alma e emoções. Explicando o que nos aprisiona, Dr. Flinstein se utiliza da história do elefante que por aprender quando pequeno que não tem forças para se soltar de sua corda, ao crescer ele nem tenta mais. É assim, segundo a realidade do filme de Sophie Barthes, que também assina o roteiro, que nos sentimos em relação à nossa alma. Ela nos aprisiona. Mas, é também nossa fonte emocional. Inspiração de reações e sensibilidades diversas. Basta observar a forma como Paul fica após extrair sua alma, não sendo capaz nem mesmo de compreender o momento delicado pelo qual uma amiga estava passando. Tudo se torna razão.
O simbolismo mais interessante que Almas à Venda traz é a forma como o banco de almas aumenta seu estoque. Nina, a russa empregada da empresa, transita da Rússia para os Estados Unidos traficando almas de pobres conterrâneos que a vendem por alguns trocados. Basta lembrar da Guerra Fria para entender o quão rica é essa construção. A empobrecida e sonhadora Rússia alimentando o rico Estados Unidos desalmado. - Aqui vai um certo spoiler, então, pule o parágrafo. - Não por acaso Paul só consegue resolver seu problema quando aluga uma alma de um poeta russo. Quem melhor para entender um personagem criado por um russo, senão um poeta de mesma nacionalidade?
A fotografia é bem trabalhada. O cenário do laboratório é todo branco, limpo, com cores lavadas. O padrão se segue nas visualizações da alma, sempre com profundidade de campo pequena. Ao contrário do dia a dia normal, onde as cores são fortes e saturadas, abusando da diversidade. Em uma cena, Paul aparece em um banheiro com paredes pretas, demonstrando o peso que está em sua vida. A sequência do hotel também abusa do vermelho, sempre dando esse tom carregado, complicado. A direção de arte é rica em detalhes, construindo bem os ambientes que indicam um pouco da personalidade dos personagens. O Dr. Flinstein aparece naquele ambiente asseado, com roupas limpas e atmosfera leve, comendo uma noz. Quer estranhamento maior? Aquele objeto duro, incomum no dia a dia, sendo quebrado ali no meio da consulta acaba desviando nossa atenção para o verdadeiro estranhamento da cena que é alguém ser capaz de extrair sua alma.
Paul Giamatti consegue construir a si mesmo de uma forma rica, convincente, tendo diferença dele no início, para quando está sem alma, ou utilizando alguma alma alheia. Dina Korzun também merece destaque como Nina, tendo uma personagem ainda mais completa em sua construção e revelações que vão nos sendo passadas aos poucos. Mas, David Strathairn acaba não conseguindo passar verdade com Dr. Flintstein.
Almas à Venda no geral é um filme instigante e bem realizado. Mas, é preciso comprar a realidade que Sophie Barthes constrói. Senão, tudo soará estranho demais, sem sentido até. É uma experimentação, uma viagem pela capacidade humana de conectar corpo e alma.
Almas à Venda (Cold Souls: 2009 / EUA)
Direção: Sophie Barthes
Roteiro: Sophie Barthes
Com: Paul Giamatti, Armand Schultz, David Strathairn, Dina Korzun.
Duração: 101 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Almas à Venda
2011-07-12T08:00:00-03:00
Amanda Aouad
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