"Nossas vidas não são nossas. Estamos vinculados a outras, passadas e presentes. E de cada crime e gesto generoso, nasce o nosso futuro." As sábias frases de Sonmi-451 resumem um pouco a ideia de David Mitchell ao escrever o livro. E outras pistas são colocadas nas bocas de outros personagens, como o próprio significado de Cloud Atlas, uma sinfonia que são movimentos em que ele imaginava "nós nos encontrando repetidas vezes em vidas diferentes, épocas diferentes". Ou mesmo a busca por entender porque sempre repetimos os mesmos erros.
Na verdade, nem David Mitchell, muito menos Tom Tykwer e os irmãos Wachowski explicam exatamente isso. O que eles fazem é seguir por vidas e vidas em um determinado grupo de pessoas, observando suas trajetórias de erros e acertos. Onde algumas erram e depois acertam, outras apenas erram e umas poucas apenas acertam. E, além dos atores que se repetem na trama outros links são feitos diretamente de uma história para outra. Robert Frobisher, por exemplo, o personagem de Ben Whishaw em 1936, está lendo um romance escrito por Adam Ewing, personagem de Jim Sturgess em 1849. Da mesma forma, Robert compõe a Cloud Atlas que irá reger o filme inteiro, e parar nas mãos do próprio ator em uma loja de discos, que Halle Berry consultará em 1973. E suas cartas escritas para Sixsmith também irão parar nas mãos da moça. Já o editor Timothy Cavendish de Jim Broadbent, escreverá um livro em 2012 que se tornará filme visto por Sonmi em 2144. E a própria Sonmi será considerada uma deusa pela tribo de 2321.
O roteiro tem uma construção bastante específica para essas tramas, aparentemente as misturando, ao contrário do livro que segue a cronologia. Mas, há uma condução clara. Tudo começa com Tom Hanks nos explicando a história. Ele fala de vozes na escuridão que podem ser ouvidas, vozes do passado. As vozes do velho Georgie, uma espécie de demônio em que se transforma Hugo Weaving, que, junto com Hugh Grant, só interpreta vilões no filme. Ele diz que vai contar como foi que eles se encontraram pela primeira vez e temos flashs de todas as tramas até começar de fato uma narrativa mais didática, com direito a legenda de época e cidade, inclusive.
A partir daí o roteiro segue todas as seis épocas juntando-as paralelamente a plots em cada história. Vemos a apresentação do mundo de cada uma, o ponto de ataque delas, as complicações, as soluções, o clímax e a resolução. É interessante observar a questão da repetição de erros e acertos que Halle Berry cita, pois temos muitas imagens quase iguais. E por vezes uma história faz raccord com a outra, como quando um personagem em uma época diz que abrirá uma porta e verá ele chegando, e isso acontece em outra vida.
É curioso também perceber que é uma história de encontro e reencontro de almas gêmeas. O amor de três casais em especial é acompanhando com maior profundidade. O quarto casal, curiosamente o que seria o guia principal já que um deles é o compositor de Cloud Atlas, se perde. É uma escolha, é verdade, Robert Frobisher não apenas tira a sua vida, dessincronizando suas vivências das de Sixsmith, como foge dele algumas vezes. Mesmo vindo como mulher, ele acaba se casando com o personagem de Hugh Grant e sendo amante do personagem de Jim Broadbent, mas não mais encontra personagens vividos por James D'Arcy. Ao contrário dos outros três casais que encontram-se e desencontram-se diversas vezes, principalmente o casal vivido por Tom Hanks e Halle Berry, que pelo menos se cruzam em todas as seis épocas.
A montagem, fundamental para compreendermos o todo, nos guia nessas escolhas de roteiro dando uma dinâmica e a sensação errônea de que temos em nossa frente tramas muito complexas e de difícil compreensão. O que na verdade, não são. São até simples, e sempre repetem os mesmos elementos. Há sempre um herói lutando contra a lei estabelecida, ganhando aliados e inimigos em sua trajetória. Sendo ajudado e traído das mais diversas formas. E os peões se misturam, claro. O herói de 1849 (Ilhas do Pacífico) é Adam Ewing (Jim Sturgess), o de 1936 (Cambridge) é Robert Frobisher (Ben Whishaw), o de 1973 (São Francisco) é Luisa Rey (Halle Berry), o de 2012 (Londres) é Timothy Cavendish (Jim Broadbent), o de 2144 (Nova Seul) é Sonmi-451 (Doona Bae) e finalmente o de 2321 (Ilhas Havaianas) é Zachry (Tom Hanks) que narra toda a história e tem o arco de transformação maior em todas as existências, sendo também o que nos conta as histórias.
Mas, se a trama possui tantos pensamentos e interpretações, os pontos de A Viagem que não podem deixar de ser ressaltados são as técnicas. A maquiagem é impressionante. Cada ator se transforma de uma maneira incrível em suas diversas existências. Assim como toda a concepção visual das épocas distintas. Os efeitos especiais também chamam a atenção, a direção de arte, a fotografia. Tudo impecável e impressionante. As imagens são grandiosas, a trilha é envolvente, o sexteto Cloud Atlas é muito bonito. E a sensação que nos deixa ao final, ainda que nosso cérebro queira algumas explicações mais explícitas é de que acompanhamos uma jornada digna, forte e com um certo otimismo sobre as possibilidades das múltiplas existências.
A Viagem não é, então, um filme fácil, mas também não o é difícil. É pretensioso, sim, mas constrói bem sua pretensão. Nos envolve e dá as pistas, basta estarmos abertos para vê-las, compreendê-las e absorvê-las. Mistura filosofias, espiritualismos e cientificismos diversos para tentar explicar o mundo. Afinal, desde que começou a ter consciência de si, o homem tentou compreender a vida e o universo. Este filme é apenas mais uma das possibilidades.
A Viagem (Cloud Atlas,2012 / EUA)
Direção: Tom Tykwer, Andy Wachowski e Lana Wachowski
Roteiro: Tom Tykwer, Andy Wachowski e Lana Wachowski
Com: Tom Hanks, Halle Berry, Jim Broadbent, Hugo Weaving, Jim Sturgess, Keith David, Susan Sarandon, Hugh Grant
Duração: 172 min.