Já falei aqui que a dublagem brasileira é considerada uma das melhores do mundo, a minha opção em ver filmes na linguagem original passa por outras questões técnicas e até analíticas, como a própria interpretação do ator. De qualquer maneira, não podemos deixar de admirar a capacidade inventiva de dubladores que fazem uma sessão como essa.
Nesta 11ª Edição do FICI, os heróis da vez foram Carlos Seidl e Roberta Nogueira. Ela, com um timbre que nos dá a sensação de já ter ouvido em algum lugar, ou em vários lugares, faz mais séries e filmes adultos, como Two and a Half Men, onde dublava Chelsea, personagem de Jennifer Taylor. Já Carlos Seidl, apesar de vasta experiência, ficou marcado por um personagem que dublou há 30 anos, mas até hoje está no ar em nossas televisões. O Seu Madruga do seriado Chaves.
Na sessão de sábado pela manhã, eles dublaram o filme holandês Os Mágicos, de Joram Lursen, que conta a história de um menino que sonha em ser um ilusionista, principalmente para descobrir o segredo do número de desaparecimento. Seu atrapalhado pai, resolve embarcar nessa aventura junto com ele, mas acaba criando um grande problema familiar. Uma aventura ingênua, própria para as crianças pequenas, mas que consegue divertir os pais também.
Pegando carona na entrevista oficial da cobertura do Festival, pudemos conversar em particular com eles depois da sessão. Vejam como foi.
FICI: Como é fazer essa sessão de dublagem ao vivo?
Roberta - São muitas coisas que a gente tem que prestar atenção. No texto, na tela que é imensa. O que é muito diferente para a gente, pois a gente dubla olhando para uma telinha. E tem várias crianças comentando atrás da gente, então, a gente tem que se desligar deles e tentar chegar o mais próximo possível do que é o nosso trabalho de dublagem. Que tem todo o sincronismo direitinho, tem uma pessoa cuidando. Mas, é muito emocionante você ficar aqui uma hora e meia em pé, tendo que fazer isso do início ao fim, sem parar em momento nenhum. A gente tenta chegar o mais próximo possível de acertar. Se a gente errou, dá uma perdoada. Na televisão, se eu errei, a gente pode voltar. Se eu não coloquei sincronizado perfeitamente, o diretor manda voltar, e a gente grava de 20 em 20 segundos. Aqui foi o filme inteiro, sem parar. Então, se torna meio que uma tradução simultânea, interpretada. Porque dublagem mesmo é bem diferente.
Carlos – Ah, é uma experiência ótima. Na dublagem pra valer, no estúdio, dublando certinho, cada um o seu personagem eu jamais dublaria esse garoto que eu acabei de fazer. Com uma vozinha mais leve, mais delicada. E ainda tem a situação de estar fazendo ele falando com um velho e no instante seguinte, ter que fazer o velho respondendo e ele perguntando novamente. Nesse diálogo mudando a cada frase de voz é um exercício, é um exercício pra gente, fantástico.
Roberta – É verdade.
Carlos – É muito bom de fazer.
Roberta – É, a gente tem que ficar mudando as intenções o tempo inteiro e pra gente fazer essas mudanças ali, em tempo real, é muito mais complicado pra gente. É mais difícil.
Carlos – E, às vezes, não dá nem tempo na imagem. A gente acaba perdendo um pouco no sincronismo, nessa ginástica para fazer o diálogo. Mas, é uma coisa imperceptível.
Roberta – É. E eu não faria também os meninos que eu fiz. Você falou uma coisa interessante. Não faria as crianças que eu fiz, porque hoje em dia não é mais assim. Antigamente, as mulheres faziam vozes dos pequenininhos, hoje em dia a gente tem um monte de criança. Então, cada um faz a sua idade. Eu faria só mulheres, ele faria só homens. E aqui, só tinha a gente, fazendo essa ginástica toda.
FICI – E sobre a participação em um Festival de Cinema Infantil? Você falou um pouquinho que as crianças ficam interagindo.
Carlos – É isso que é bacana, né? Porque a gente tem a oportunidade de ver a reação do público no momento em que a gente está trabalhando. Geralmente você trabalha dentro de um estúdio fechado, uma coisa fria, com um diretor ali só dizendo que você errou. Ficou curto, ficou muito grande, vamos adaptar este texto melhor. A tradução está muito quadrada, vamos mudar para como a gente fala mesmo. Às vezes, essa adaptação a gente tem que fazer no estúdio, na hora. Tradutor gosta muito de explicar as coisas, então, ele coloca cinco, seis palavras onde poderia colocar três. E se você fala muito rápido, perde na interpretação, fica uma coisa jogada, despejada.
CinePipocaCult – Bom, a dublagem é um trabalho de ator, certo? Vocês são atores e reinterpretam esses personagens. Há espaço, além da adaptação da fala para uma nova construção de personagem?
Roberta – Não, isso aí é interessante você falar. Por exemplo, pra ser um dublador, você tem que ser ator. Não tem como você ser um dublador, se você não é ator. Agora, para você ser um dublador, você tem que se despir de toda a sua vaidade, porque está vindo uma obra pronta. Então, você não vai interpretar da sua forma, você vai interpretar aquilo que já está pronto. Aquilo que está lá na sua televisão, que você está olhando. Então, você somente empresta a sua voz pra aquilo que já está pronto.
CinePipocaCult – Então, você tem que estudar a interpretação do ator, para reproduzir algo parecido?
Roberta – Exatamente. Uma pena que no Brasil não funcione como no resto do mundo, onde o dublador, pode levar o filme para casa, ter um tempo para estudar, eles ensaiam. No Brasil, não. A gente chega no estúdio, cada um com seu horário de dublagem, e ao chegar é que a gente vai saber, você vai dublar tal pessoa. Então, isso é a técnica, a gente olha para aquela pessoa e já sabe o que tem que fazer. Claro, você pega isso depois de dez anos, não é três anos. É bastante tempo. Claro que algumas pessoas especiais, conseguem pegar isso muito mais cedo. Mas, é praticamente isso. Você se despir da sua vaidade de ator, ver o que está acontecendo ali e emprestar a sua voz em prol daquele personagem.
CinePipocaCult – Você disse que faz normalmente mulheres da sua idade, mas há uma variação de timbre, de uma para outra, como você cria a voz da personagem?
Roberta – Depende muito da imagem que você está vendo. Por exemplo, chegar aqui e fazer friamente, é mais complicado. Se você vai ver um desenho, você consegue brincar mais com a sua voz, você pode fazer gracinhas. Num filme com pessoas reais, não tem como. Então, se você faz uma negra, geralmente, essa negra tem uma voz um pouco mais grave do que uma garota novinha. Então, você tem essa diferenciação, mas você só percebe isso, a medida que você vai vendo ali a imagem, com o texto que você faz. Você consegue ver essa diferença.
Carlos – A gente dubla todos os dias em vários estúdios. Tem dias que você vai para quatro, cinco estúdios diferentes de manhã até de noite. A produção é muito grande e o número de participações também é grande. Às vezes, você termina o dia, sem saber quais filmes você dublou. Você fica sabendo só os que você tem uma participação maior.
CinePipocaCult – E como é fazer a voz do Seu Madruga a tanto tempo?
Carlos – O Seu Madruga faz parte do Programa do Chaves que está sendo reprisado há 30 anos. Então, ele se destaca não apenas pela qualidade, pela simpatia, pelo carisma do ator, do trabalho que a gente fez em cima, mas pela própria repetição. Está passando há trinta anos, então, em determinado momento, todo mundo conhece, porque já ouviu falar, já viu. É uma coisa que marca. E é legal você ter uma coisa assim. Uma referência. As pessoas já sabem, “ah, você é dublador de Seu Madruga?” Sim, entre outras coisas, porque isso foi feito há quase trinta anos, porque o trabalho já está lá.
CinePipocaCult – Mas, o desenho, você também dublou?
Carlos – Sim, eu dublei o desenho também, que foi feito lá no Rio. Porque a série foi dublada em São Paulo. Agora, quando o desenho ficou pronto, eu já tinha mudado pro Rio e estava dirigindo dublagem na Herbert Richers. O Sílvio Santos que já tinha terminado o estúdio de dublagem dele e mandou para a Herbert Richers. Então, alguns dubladores são do Rio, outros são de São Paulo.
Roberta – E também porque alguns dubladores originais já tinham falecido. Então, precisou fazer uma adaptação no processo, com outros dubladores onde as vozes fossem um pouco parecidas.
Carlos – É, mas tinha os tipos. Até porque era outra produção, desenho é uma coisa, ao vivo é outra. No México, não foram os atores que colocaram as vozes no desenho, foi um estúdio de dublagem, com dubladores. Então, não tinha muito problema de manter a voz.
Roberta – Apesar de que os fãs do Brasil exigem os mesmos dubladores. Eles tem uma força impressionante em relação ao Chaves. O Sílvio Santos já tentou tirar o Chaves do ar muitas vezes, mas os fãs não deixam.
Carlos – E dá Ibope. Cada vez que o Chaves entra no ar, dá audiência.
CinePipocaCult – Vocês falaram muito da experiência em TV. Mas, vocês também fazem cinema? Dublam filmes para o cinema?
Os Mágicos |
Carlos – Atualmente, os filmes em cinema, já estão com uma aceitação maior da dublagem.
Roberta – Exatamente.
Carlos – Os distribuidores perceberam que a procura pelas salas dubladas é grande. A depender do tipo de filme, até maior que a legendada. Então, eles estão começando a investir nesse mercado, que pra gente é ótimo.
Roberta – É, a gente adoraria que fosse assim. Tem filme dublado, tem filme legendado, tem filme na língua original. Que todos os filmes tivessem todas as opções pra que você escolhesse. E não que deixassem de dublar os filmes.
CinePipocaCult – E nem deixassem de oferecer a versão legendada...
Roberta – Exatamente, sem imposição. Tem gente que está a fim de ver o filme dublado, vê. E quem quer ver legendado, pode ver também. Tem um caminho aí para todo mundo, então, vamos fazer para todo mundo.