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Othon Bastos
Grandes Cenas: Deus e o Diabo na Terra do Sol
Grandes Cenas: Deus e o Diabo na Terra do Sol
Se estivesse vivo, Glauber Rocha completaria hoje 75 anos. Nascido em Vitória da Conquista, o diretor começou a desenvolver o seu pensamento e olhar cinéfilo no Cine Clube organizado por Walter da Silveira. E o antigo crítico baiano via em Glauber muito do que ele idealizava para o cinema baiano. Mas, o conquistense foi além, sendo um dos fundadores do movimento do Cinema Novo e influenciando a Bahia, o Brasil e o mundo, ao ponto de fazer Godard repensar o seu cinema, basta ver o que fez em Vento do Leste.
Uma pena que, em janeiro desse ano, Lúcia Rocha, a mãe de Glauber tenha falecido. Guerreira e principal divulgadora das memórias de seu filho, com certeza faria muito barulho por esses 75 anos de sua vinda à Terra. Jamais esqueço de sua imagem de indignação no filme de Fernando Belens (A Mãe), reclamando de um estranho monumento em Vitória da Conquista que seria em homenagem ao filho. Mas, se ela não pode, lembremos nós do seu mais ilustre filho.
Pensei em várias homenagens, mas como há tempos não trazia uma grande cena, resolvi unir todas as possibilidades trazendo a cena final de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Acredito que esta pequena ópera nordestina representa bem o que foi Glauber Rocha, que vai além do diretor e sua filmografia. O que sempre me encantou no diretor foi o seu pensamento crítico e teórico, externado também em diversos textos e no programa de televisão que apresentava. A bandeira que defendia, a efervescência intelectual que muitas vezes não conseguia externar tão claramente em seus filmes, vide que muitos foram incompreendidos, como A Idade da Terra, sua última obra. Até por isso, gosto muito também de suas incursões pelos documentário, como Di Cavalcanti e, principalmente, Jorge Amado no Cinema, onde mostra, protesta e brinca com o tema.
Mas, voltemos a Deus e o Diabo na Terra do Sol, ou Black God, White Devil, como foi lançado internacionalmente. Encanta a genialidade de retratar o sertão como um verdadeiro campo de batalhas intelectuais, onde o povo representado por Manuel se vê entre as filosofias do cangaço, representado por Corisco, e da religião, representado pelo santo Sebastião, além, claro da lei governamental em Antonio das Mortes e a repressão inicial do coronel.
E o final, com Corisco e Dadá sendo emboscados por Antonio das Mortes, Manuel e Rosa correndo em direção ao horizonte, mesmo com ela ficando no caminho e ele continuando sem parar é apoteótico em diversos aspectos. A começar pelos versos de Glauber transformados em poesia e vilão de Sérgio Ricardo. Todo o filme é composto como uma espécie de cordel e esta parte final é toda narrada pela música, que Glauber também misturou com as partituras de Heitor Villa-Lobos, dando essa junção operística ainda mais interessante.
A cena começa com vários planos abertos de Antonio das Mortes andando pela paisagem seca. Até que temos a inserção de um plano dos quatro (Corisco, Dadá, Rosa e Manuel) andando. A câmera abre ainda mais e dá uma pan, mostrando que o matador está próximo e já mirando o grupo. É a preparação perfeita para um duelo final.
Quanto Antonio das Mortes baixa a arma em vez de atirar, a música começa, apresentando o grito de Sérgio Ricardo como se fosse o do próprio matador avisando seu inimigo. "Se entrega, Corisco!". Depois vem o "Eu não me entrego não", e com ele, os primeiros tiros. A primeira parte do tiroteio é feita com o plano parado, ainda em plano geral, vemos Antonio das Mortes ir se afastando, enquanto ouvimos os tiros e a música.
Quando a câmera se aproxima é tudo muito confuso. Manuel e Rosa deitados no chão, tentando se esconder. Corisco largando a arma, que provavelmente acabou as balas. Dadá correndo. Dadá ferida, Corisco pegando ela e a arrastando. Até o close de Antonio das Mortes, agora com o ator Maurício do Valle dizendo: "se entrega, Corisco". Toda essa construção é para nos passar a adrenalina do momento, a expectativa dos acontecimentos, ainda que saibamos sobre a história real.
A resposta de Corisco é uma das mais famosas cenas do filme. O grito com o pulo para trás, que Glauber na montagem constrói em repetição reforçando a garra do cangaceiro e dando ainda mais dinâmica à cena nos impacta. Para logo depois vir o plano da morte, com ele rodopiando e gritando "mais forte são os poderes do povo", e Dadá gritando ao fundo. É teatral, é um discurso político, é Glauber e não Corisco gritando para a tela, mas é nisso que reside a força da obra do diretor. E a narração, como boa guia, cantarola: "Mataram Corisco, balearam Dadá".
Depois, esquecemos Dadá, Antonio das Mortes e mesmo, Corisco para acompanhar Rosa e Manuel correndo desesperados ao som de "O Sertão vai virar mar". É um plano longo, contínuo com mais de um minuto de duração e vamos junto com eles. Rosa chega a cair no meio do caminho, mas Manuel continua com a sensação de infinitivo. Ele não pára, e Glauber faz uma junção dessa cena com uma aérea do mar. Que claro, traz o sentido literal da letra, mas também o sentido figurado. Manuel é mais um dos retirantes que vai para o litoral em busca de uma vida melhor. E que provavelmente não encontrará. Afinal, "este mundo está errado", a terra deveria ser do homem, "não de Deus, nem do Diabo". Ou seja, era Manuel que deveria ter o seu pedaço de chão, não o governo, os coronéis, a igreja, os Antonios das Mortes, os beatos, os falsos profetas.
Perseguição / Sertão Vai Virar Mar
Se entrega Corisco!
Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão
Se entrega Corisco eu não me entrego não
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte de parabelo na mão
Se entrega Corisco (se entrega Corisco)
Eu não me entrego não! Eu não me entrego não
Eu não me entrego não
Se entrega Corisco!
Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão
Se entrega Corisco eu não me entrego não
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte de parabelo na mão
Se entrega Corisco (se entrega Corisco)
Eu não me entrego não! Eu não me entrego não
Eu não me entrego não
Farrea, farrea povo
Farrea até o sol raiar
Mataram Corisco
Balearam Dadá (bis…)
O sertão vai virá mar
E o mar virá sertão (bis)
Tá contada a minha estória
Verdade e imaginação
Espero que o sinhô
Tenha tirado uma lição
Que assim mal dividido
Esse mundo anda errado
Que a terra é do homem
Num é de Deus nem do Diabo (bis)
Uma pena que, em janeiro desse ano, Lúcia Rocha, a mãe de Glauber tenha falecido. Guerreira e principal divulgadora das memórias de seu filho, com certeza faria muito barulho por esses 75 anos de sua vinda à Terra. Jamais esqueço de sua imagem de indignação no filme de Fernando Belens (A Mãe), reclamando de um estranho monumento em Vitória da Conquista que seria em homenagem ao filho. Mas, se ela não pode, lembremos nós do seu mais ilustre filho.
Pensei em várias homenagens, mas como há tempos não trazia uma grande cena, resolvi unir todas as possibilidades trazendo a cena final de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Acredito que esta pequena ópera nordestina representa bem o que foi Glauber Rocha, que vai além do diretor e sua filmografia. O que sempre me encantou no diretor foi o seu pensamento crítico e teórico, externado também em diversos textos e no programa de televisão que apresentava. A bandeira que defendia, a efervescência intelectual que muitas vezes não conseguia externar tão claramente em seus filmes, vide que muitos foram incompreendidos, como A Idade da Terra, sua última obra. Até por isso, gosto muito também de suas incursões pelos documentário, como Di Cavalcanti e, principalmente, Jorge Amado no Cinema, onde mostra, protesta e brinca com o tema.
Mas, voltemos a Deus e o Diabo na Terra do Sol, ou Black God, White Devil, como foi lançado internacionalmente. Encanta a genialidade de retratar o sertão como um verdadeiro campo de batalhas intelectuais, onde o povo representado por Manuel se vê entre as filosofias do cangaço, representado por Corisco, e da religião, representado pelo santo Sebastião, além, claro da lei governamental em Antonio das Mortes e a repressão inicial do coronel.
E o final, com Corisco e Dadá sendo emboscados por Antonio das Mortes, Manuel e Rosa correndo em direção ao horizonte, mesmo com ela ficando no caminho e ele continuando sem parar é apoteótico em diversos aspectos. A começar pelos versos de Glauber transformados em poesia e vilão de Sérgio Ricardo. Todo o filme é composto como uma espécie de cordel e esta parte final é toda narrada pela música, que Glauber também misturou com as partituras de Heitor Villa-Lobos, dando essa junção operística ainda mais interessante.
A cena começa com vários planos abertos de Antonio das Mortes andando pela paisagem seca. Até que temos a inserção de um plano dos quatro (Corisco, Dadá, Rosa e Manuel) andando. A câmera abre ainda mais e dá uma pan, mostrando que o matador está próximo e já mirando o grupo. É a preparação perfeita para um duelo final.
Quanto Antonio das Mortes baixa a arma em vez de atirar, a música começa, apresentando o grito de Sérgio Ricardo como se fosse o do próprio matador avisando seu inimigo. "Se entrega, Corisco!". Depois vem o "Eu não me entrego não", e com ele, os primeiros tiros. A primeira parte do tiroteio é feita com o plano parado, ainda em plano geral, vemos Antonio das Mortes ir se afastando, enquanto ouvimos os tiros e a música.
Quando a câmera se aproxima é tudo muito confuso. Manuel e Rosa deitados no chão, tentando se esconder. Corisco largando a arma, que provavelmente acabou as balas. Dadá correndo. Dadá ferida, Corisco pegando ela e a arrastando. Até o close de Antonio das Mortes, agora com o ator Maurício do Valle dizendo: "se entrega, Corisco". Toda essa construção é para nos passar a adrenalina do momento, a expectativa dos acontecimentos, ainda que saibamos sobre a história real.
A resposta de Corisco é uma das mais famosas cenas do filme. O grito com o pulo para trás, que Glauber na montagem constrói em repetição reforçando a garra do cangaceiro e dando ainda mais dinâmica à cena nos impacta. Para logo depois vir o plano da morte, com ele rodopiando e gritando "mais forte são os poderes do povo", e Dadá gritando ao fundo. É teatral, é um discurso político, é Glauber e não Corisco gritando para a tela, mas é nisso que reside a força da obra do diretor. E a narração, como boa guia, cantarola: "Mataram Corisco, balearam Dadá".
Depois, esquecemos Dadá, Antonio das Mortes e mesmo, Corisco para acompanhar Rosa e Manuel correndo desesperados ao som de "O Sertão vai virar mar". É um plano longo, contínuo com mais de um minuto de duração e vamos junto com eles. Rosa chega a cair no meio do caminho, mas Manuel continua com a sensação de infinitivo. Ele não pára, e Glauber faz uma junção dessa cena com uma aérea do mar. Que claro, traz o sentido literal da letra, mas também o sentido figurado. Manuel é mais um dos retirantes que vai para o litoral em busca de uma vida melhor. E que provavelmente não encontrará. Afinal, "este mundo está errado", a terra deveria ser do homem, "não de Deus, nem do Diabo". Ou seja, era Manuel que deveria ter o seu pedaço de chão, não o governo, os coronéis, a igreja, os Antonios das Mortes, os beatos, os falsos profetas.
Perseguição / Sertão Vai Virar Mar
Se entrega Corisco!
Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão
Se entrega Corisco eu não me entrego não
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte de parabelo na mão
Se entrega Corisco (se entrega Corisco)
Eu não me entrego não! Eu não me entrego não
Eu não me entrego não
Se entrega Corisco!
Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão
Se entrega Corisco eu não me entrego não
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte de parabelo na mão
Se entrega Corisco (se entrega Corisco)
Eu não me entrego não! Eu não me entrego não
Eu não me entrego não
Farrea, farrea povo
Farrea até o sol raiar
Mataram Corisco
Balearam Dadá (bis…)
O sertão vai virá mar
E o mar virá sertão (bis)
Tá contada a minha estória
Verdade e imaginação
Espero que o sinhô
Tenha tirado uma lição
Que assim mal dividido
Esse mundo anda errado
Que a terra é do homem
Num é de Deus nem do Diabo (bis)
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Grandes Cenas: Deus e o Diabo na Terra do Sol
2014-03-14T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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