Balanço do Festival de Brasília
Um caso curioso e inédito chamou a atenção na noite de premiação de Brasília. Os seis diretores dos longa-metragens participantes da Mostra Competitiva decidiram dividir em partes iguais os R$ 250.000,00 do prêmio principal. Entre outras questões, alegaram a imensa diferença deste para os demais prêmios. E que a curadoria deste ano teria escolhido obras bastantes diversas com capacidade de discussão de linguagem tão interessante, que todos mereceriam, até para ajudar no processo de distribuição. Isso demonstra o clima amigável que dominou os sete dias de festival e, por mais que pareçam distintos, a sintonia entre os realizadores presentes.
Os seis longa-metragens da Mostra Competitiva tinham muitas questões em comum. A principal delas é que todas flertam com uma certa mistura entre documentário e ficção. Mesmo Sem Pena, que é o mais documental de todos, traz elementos da ficção, principalmente na montagem e escolha de símbolos para ilustrar o que os depoentes dizem. E um filme teoricamente totalmente ficcional como Ela Volta na Quinta, traz a família do diretor interpretando a si mesmo em um timming extremamente documental. Da mesma forma que Ventos de Agosto que coloca, inclusive, o diretor em cena como um "medidor de ventos", no momento mais documental da obra.
Branco Sai. Preto Fica, então, tem em sua essência essa mistura ao trazer elementos da ficção científica em uma Brasília futurista para retratar o passado e o presente de exclusão de uma sociedade. E Pingo D´água também trabalha esses limites ao utilizar a metalinguagem encenando a própria construção do longa e as discussões filosóficas por trás dos personagens. As cenas de Jean Claude Bernardet na janela, por exemplo, demonstram bem isso.
A decisão do Festival em não mais ter categorias tem muito a ver com isso. São todos filmes, em suas diversidades e suas misturas documentais e ficcionais. O que é extremamente interessante, mas também dificulta a distribuição e acesso do público. Dois dos seis filmes tiveram pessoas saindo no meio da sessão. O que não chega a significar algo ruim, é até uma provocação interessante, vide os filmes de Terrence Malick. Já Sem Pena foi ovacionado por um bom tempo e, não por acaso, ganhou o prêmio do júri popular mesmo competindo com um filme de Brasília.
No final, a divisão se demonstrou justa, ainda que ache estranho um filme como Brasil S/A levar melhor direção, melhor roteiro, melhor trilha / som e montagem, mas não levar o prêmio de melhor filme. Longe de mim querer questionar a decisão do júri, nem mesmo considerar que Branco Sai. Preto Fica não mereça. Estava, inclusive, no júri da crítica que também o premiou. Mas, talvez a distribuição das categorias pudesse ser mais heterogênea. De qualquer forma, ambos são ótimos filmes, tecnicamente impressionantes e criativos, construindo exercícios de linguagem que nos instigam. Para mim, são os dois melhores do Festival, ainda que goste da maioria.
Já entre os curta-metragens a variedade é maior, como pede o próprio formato do curta. E ao colocar documentários, filmes de gênero, experimentais e até uma animação no mesmo pacote fica mesmo mais complicado criar os critérios de avaliação. Ainda assim, há aqueles que se destacam.
A escolha da crítica que também levou o prêmio de melhor roteiro, Estátua!, é, de fato, o filme mais conciso. Um bom desenvolvimento com começo, meio e fim. Além de uma boa utilização dos elementos do suspense e do horror, que, em minha opinião, ficaram um pouco over em Nua Por Dentro do Couro e Loja de Répteis. O que não quer dizer que ambos não tenham qualidades. A naturalidade na construção das situações do condomínio em Nua é muito feliz, principalmente na cena do corredor com a síndica. E Loja de Répteis tem mesmo qualidades técnicas que chamam a atenção.
O vencedor do júri oficial, Sem Coração, também é um filme sensível, com uma ótima construção de planos, e mesmo a fotografia mais granulada do 16mm traz um significado próprio para a história das crianças e suas descobertas de pré-adolescência. A junção de significados, os detalhes, a chuva, a fusão da piscina cheia com a lembrança da piscina vazia, a mão cerrada em um mistério instigante. Tudo nos toca.
Mas, mesmo sem premiações queria destacar também aqui Vento Virado e La Llamada. O primeiro pela construção imagética com metáforas do inconsciente que chamaram a minha atenção. O curta é construído praticamente todo em um buraco, uma espécie de toca onde o protagonista coleciona objetos e memórias. A experimentação, no caso de curtas, sempre me instiga. Da mesma forma que o filme La Llamada me chamou a atenção pela particularidade do personagem retratado. Um cubano simples, com ideologias socialistas ainda tão próprias e particulares e que é retratado com uma simplicidade cativante, em um formato quase de cinema direto, mas que também traz limites entre a ficção e o documentário. Coisa que o curta Geru tentou fazer, mas acabou se perdendo no final, ao tentar ser mais intelectual do que precisava inserindo trechos de Bergman no filme.
Mas, na verdade, dentre os doze curta-metragens, o único que não me cativou foi mesmo o vencedor do júri popular. Crônica de uma Cidade Inventada tem boas intenções. E até momentos bons, mas, no geral, se torna um filme vazio ao falar de tudo e nada ao mesmo tempo. E não traz nenhum exercício de linguagem propriamente dito. Apenas um registro de uma cidade, no caso, Brasília.
No final, o Festival de Brasília demonstrou-se um excelente exercício de linguagens, experimentações e contatos diversos. Um Festival com carácter político forte, vide as manifestações da plateia a cada citação mais explícita e que de alguma forma dialoga com o cenário nacional como um todo. Torço para que todos tenham acesso às obras, principalmente aos longas que, dos seis, três já tem distribuição garantida. Sem Pena, inclusive, estreia na próxima semana.
Como tive a oportunidade de analisar todos os filmes da competitiva, até para ter argumentos na decisão do júri, fiz o meu ranking pessoal de preferência entre curtas e longas. Confira.
Ranking pessoal:
Longas:
Brasil S/A
Branco Sai. Preto Fica
Sem Pena
Ela Volta na Quinta
Ventos de Agosto
Pingo D´água
Curtas:
Vento Virado
La Llamada
Estátua!
Sem Coração
Luz
B-Flat
Bashar
Geru
Loja de Répteis
Castillo y el Armado
Nua Por Dentro do Couro
Crônicas de uma Cidade Inventada
Os seis longa-metragens da Mostra Competitiva tinham muitas questões em comum. A principal delas é que todas flertam com uma certa mistura entre documentário e ficção. Mesmo Sem Pena, que é o mais documental de todos, traz elementos da ficção, principalmente na montagem e escolha de símbolos para ilustrar o que os depoentes dizem. E um filme teoricamente totalmente ficcional como Ela Volta na Quinta, traz a família do diretor interpretando a si mesmo em um timming extremamente documental. Da mesma forma que Ventos de Agosto que coloca, inclusive, o diretor em cena como um "medidor de ventos", no momento mais documental da obra.
Branco Sai. Preto Fica, então, tem em sua essência essa mistura ao trazer elementos da ficção científica em uma Brasília futurista para retratar o passado e o presente de exclusão de uma sociedade. E Pingo D´água também trabalha esses limites ao utilizar a metalinguagem encenando a própria construção do longa e as discussões filosóficas por trás dos personagens. As cenas de Jean Claude Bernardet na janela, por exemplo, demonstram bem isso.
A decisão do Festival em não mais ter categorias tem muito a ver com isso. São todos filmes, em suas diversidades e suas misturas documentais e ficcionais. O que é extremamente interessante, mas também dificulta a distribuição e acesso do público. Dois dos seis filmes tiveram pessoas saindo no meio da sessão. O que não chega a significar algo ruim, é até uma provocação interessante, vide os filmes de Terrence Malick. Já Sem Pena foi ovacionado por um bom tempo e, não por acaso, ganhou o prêmio do júri popular mesmo competindo com um filme de Brasília.
No final, a divisão se demonstrou justa, ainda que ache estranho um filme como Brasil S/A levar melhor direção, melhor roteiro, melhor trilha / som e montagem, mas não levar o prêmio de melhor filme. Longe de mim querer questionar a decisão do júri, nem mesmo considerar que Branco Sai. Preto Fica não mereça. Estava, inclusive, no júri da crítica que também o premiou. Mas, talvez a distribuição das categorias pudesse ser mais heterogênea. De qualquer forma, ambos são ótimos filmes, tecnicamente impressionantes e criativos, construindo exercícios de linguagem que nos instigam. Para mim, são os dois melhores do Festival, ainda que goste da maioria.
Já entre os curta-metragens a variedade é maior, como pede o próprio formato do curta. E ao colocar documentários, filmes de gênero, experimentais e até uma animação no mesmo pacote fica mesmo mais complicado criar os critérios de avaliação. Ainda assim, há aqueles que se destacam.
A escolha da crítica que também levou o prêmio de melhor roteiro, Estátua!, é, de fato, o filme mais conciso. Um bom desenvolvimento com começo, meio e fim. Além de uma boa utilização dos elementos do suspense e do horror, que, em minha opinião, ficaram um pouco over em Nua Por Dentro do Couro e Loja de Répteis. O que não quer dizer que ambos não tenham qualidades. A naturalidade na construção das situações do condomínio em Nua é muito feliz, principalmente na cena do corredor com a síndica. E Loja de Répteis tem mesmo qualidades técnicas que chamam a atenção.
O vencedor do júri oficial, Sem Coração, também é um filme sensível, com uma ótima construção de planos, e mesmo a fotografia mais granulada do 16mm traz um significado próprio para a história das crianças e suas descobertas de pré-adolescência. A junção de significados, os detalhes, a chuva, a fusão da piscina cheia com a lembrança da piscina vazia, a mão cerrada em um mistério instigante. Tudo nos toca.
Mas, mesmo sem premiações queria destacar também aqui Vento Virado e La Llamada. O primeiro pela construção imagética com metáforas do inconsciente que chamaram a minha atenção. O curta é construído praticamente todo em um buraco, uma espécie de toca onde o protagonista coleciona objetos e memórias. A experimentação, no caso de curtas, sempre me instiga. Da mesma forma que o filme La Llamada me chamou a atenção pela particularidade do personagem retratado. Um cubano simples, com ideologias socialistas ainda tão próprias e particulares e que é retratado com uma simplicidade cativante, em um formato quase de cinema direto, mas que também traz limites entre a ficção e o documentário. Coisa que o curta Geru tentou fazer, mas acabou se perdendo no final, ao tentar ser mais intelectual do que precisava inserindo trechos de Bergman no filme.
Mas, na verdade, dentre os doze curta-metragens, o único que não me cativou foi mesmo o vencedor do júri popular. Crônica de uma Cidade Inventada tem boas intenções. E até momentos bons, mas, no geral, se torna um filme vazio ao falar de tudo e nada ao mesmo tempo. E não traz nenhum exercício de linguagem propriamente dito. Apenas um registro de uma cidade, no caso, Brasília.
No final, o Festival de Brasília demonstrou-se um excelente exercício de linguagens, experimentações e contatos diversos. Um Festival com carácter político forte, vide as manifestações da plateia a cada citação mais explícita e que de alguma forma dialoga com o cenário nacional como um todo. Torço para que todos tenham acesso às obras, principalmente aos longas que, dos seis, três já tem distribuição garantida. Sem Pena, inclusive, estreia na próxima semana.
Como tive a oportunidade de analisar todos os filmes da competitiva, até para ter argumentos na decisão do júri, fiz o meu ranking pessoal de preferência entre curtas e longas. Confira.
Ranking pessoal:
Longas:
Brasil S/A
Branco Sai. Preto Fica
Sem Pena
Ela Volta na Quinta
Ventos de Agosto
Pingo D´água
Curtas:
Vento Virado
La Llamada
Estátua!
Sem Coração
Luz
B-Flat
Bashar
Geru
Loja de Répteis
Castillo y el Armado
Nua Por Dentro do Couro
Crônicas de uma Cidade Inventada
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Balanço do Festival de Brasília
2014-09-26T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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