O tradicional formato de depoimentos com imagens e fotos de arquivo é transcendido aqui em diversos aspectos, ainda que os tenha. A começar por um roteiro bem planejado que vai nos guiando de maneira extremamente harmônica por toda a carreira de Cássia, resgatando desde suas primeiras apresentações em teatros até se tornar conhecida por todo o país. Fotos, vídeos e depoimentos vão, então, contando a história junto com as músicas que entram também em momentos estratégicos como "All Star" no depoimento de Nando Reis sobre a relação dos dois ou "1° de Julho" no nascimento de Chicão.
As fotos não são também simplesmente colocadas em tela, há todo um trabalho de montagem, inclusive trabalhando as imagens com um efeito de recorte que desloca alguns elementos dando uma tridimensionalidade a elas que preenchem ainda mais a tela e dão um resultado bem mais agradável. Ao mesmo tempo em que trabalha com texturas das imagens, não deixando-as cruas em sua composição. É possível ver poeira na tela, ou a fumaça do cigarro, por exemplo.
Fora isso, Paulo Henrique Fontenelle se utiliza de algumas cartas de Cássia Eller para pontuar momentos chaves, principalmente o início e o final do filme fechando um ciclo potente da importância da música para a cantora. A atriz Malu Mader é quem empresta sua voz para as cartas, dando um tom mais doce no timbre grave de cantora, mas que traduz uma parte do que o documentário quer mostrar: por trás daquela potência transgressora no palco existia uma mulher extremamente doce, carinhosa e tímida.
Este aspecto é bastante explorado na obra, principalmente sua timidez que acabou criando problemas internos para ela, principalmente com o excesso de fama. Isso não significava que o processo a atrapalhava enquanto artista. Em um dos momentos, um dos depoimentos, inclusive, frisa isso dizendo que "a timidez não impedia a coragem artística". Era como se ela se transformasse no palco, ganhando força, se sentindo à vontade e dominando o espaço, como no show do Rock n´Rio um dos marcos de sua carreira.
Timidez, stress e excesso de fama a levam a alguns excessos como de drogas e álcool, questões que o documentário não se furta a analisar de maneira aberta, honesta, mas deixando claro a construção sensacionalista em torno de sua morte que foi, na realidade, por infarto no miocárdio e não por overdose como alguns veículos chegaram a afirmar. Todo esse processo de desrespeito com a memória da cantora, junto com o absurdo processo que o pai de Cássia moveu para tentar ficar com a tutela de Chicão são abordados no filme, reforçando a força e importância da cantora para temas como homossexualidade e legalização das relações homoafetivas.
O documentário não nega os diversos envolvimentos de Cássia Eller, inclusive com a percussionista Lan Lan, e fala sobre o pai de seu filho. Mas, reforça o tempo todo a sólida relação com Eugênia e sua vontade de que a companheira continuasse com o filho delas após sua morte. É interessante perceber, inclusive, que no primeiro depoimento de Eugênia, ela se refere a Cássia como se ainda estivesse viva, porque em parte, ela realmente continua. Vide as imagens resgatadas pelo filme.
Cássia é um documentário extremamente envolvente. Seja pela personagem retratada, seja pela maneira como Paulo Henrique Fontenelle conduziu cada plano escolhido. Tudo é dinâmico e harmônico nos fazendo caminhar por aquela história com interesse. Senti apenas a ausência de uma citação ao clipe do Fantástico que ela fez com Edson Cordeiro em 1993 cantando Satisfaction, que foi a primeira vez em que vi a cantora. De qualquer maneira, é uma obra rica em sua essência e que dá vontade de aplaudir, como vi algumas pessoas fazendo na sessão em que fui.
Cássia Eller (Cássia Eller, 2015 / Brasil)
Direção: Paulo Henrique Fontenelle
Roteiro: Paulo Henrique Fontenelle
Com: Cássia Eller, Nando Reis, Oswaldo Montenegro, Zélia Duncan, Malu Mader
Duração: 140 min.