Jackie
A família Kennedy é, talvez, o mais próximo de uma "família real" que os Estados Unidos já teve. Por isso, a comparação com Camelot nos pareça tão pertinente. Principalmente pela mística em torno do Rei Arthur e seus cavaleiros em contraste com os problemas de bastidores, digamos assim. É isso que Pablo Larraín quer mostrar, o fascínio criado e o que aconteceu por trás disso, mas ele nunca desnuda completamente sua protagonista.
Jackie não é uma cinebiografia. A ideia não é resgatar a história de Jacqueline Kennedy Onassis, nem mesmo da família Kennedy. Ele se aproveita de um acontecimento marcante, a morte de JFK, para se aproximar da protagonista. O roteiro constrói três linhas narrativas bases, a entrevista dela a um jornalista, os flashbacks dos acontecimentos e um programa de televisão que a primeira dama apresentava, mostrando o interior da Casa Branca. E uma quarta, um pouco menor e pontual, de sua conversa com um padre. Talvez aí esteja um problema.
Não falo da escolha dessas três linhas, mas da maneira como elas se emaranham no roteiro. O efeito crítico e irônico da imagem forçadamente simpática e até mesmo frágil da primeira dama no programa televisivo perde força ao ser exaustivamente utilizado e pelos momentos em que entram em cena. Ele serve apenas para nos mostrar essa máscara e o filme acaba deixando-o muito tempo no ar, quando a força da trama está mesmo no jogo da entrevista e na confissão ao padre.
A Jackie Kennedy do programa a gente já "conhece". Acompanhou em matérias, entrevistas, reportagens diversas nos anos que sua família foi vítima de tragédias ou escândalos. Ver essa mulher sendo construída a partir de um trauma que foi ver seu marido morto ao seu lado é que torna tudo interessante. A maneira como ela entra e sai da personagem enquanto fala com o repórter é incrível. Coisas irônicas como ela com um cigarro na mão dizer: eu não fumo ou afirmar "eu nunca disse isso" para algo que tinha acabado de falar. Nos mostra também, as diversas camadas de máscaras que ela utiliza durante os diversos momentos.
Mas é com o padre vemos, talvez, o seu momento mais verdadeiro. Protegida pelo voto de confissão, ela expõe seus pensamentos de maneira mais livre que com o repórter. E, aqui, nos aproximamos mais dela, de suas emoções, suas angústias. Falta mais disso para que a trama cresça de fato. Agora, Natalie Portman tem todos os méritos ao construir as nuanças da personagem de uma maneira tão hábil. A aparência física ajuda, mas vemos aqui um trabalho de postura, tom de voz, movimentos calculados que impressionam. Isso sem falar na emoção contida nas cenas do velório.
Uma coisa que o roteiro tem de mérito é a escolha de alguns flashbacks que ficam para o final, causando muito mais impacto, por mais que já soubéssemos o que tinha acontecido. E nesse ponto, é preciso ressaltar o incrível trabalho de reconstituição de época, a mistura de cenas de arquivo com recriações e o jogo contínuo do que é mostrado a público e o que é escondido nos bastidores.
A direção de Pablo Larraín busca esse clima quase documental, nos dando a sensação de estar ali de fato, nos bastidores da história. Sempre com um viés crítico, detalhando o planejamento do cortejo e a busca pela comparação com Lincoln e com o desejo de não ser esquecido. Ainda que raramente vejamos de fato o que Jackie sente, mas sim, suas diversas camadas de personas. E a insistência da reprodução do programa de televisão acabam esvaziando ainda mais a força da narrativa. Muitas vezes mais é menos. E isso acaba enfraquecendo o impacto do filme.
De qualquer maneira, temos aqui uma proposta diferente sobre uma personagem histórica tão forte e marcante. Construída com a mística das grandes princesas e rainhas que povoam o imaginário popular e que aqui traz um vislumbre de sua real persona. Egoísta e dissimulada muitas vezes. Mas também uma leoa defendendo os seus. Talvez o filme não faça tanto jus a isso. Mas já é uma construção mais digna do que obras como Diana ou Grace de Mônaco.
Jackie (Jackie, 2016 / EUA)
Direção: Pablo Larraín
Roteiro: Noah Oppenheim
Com: Natalie Portman, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig
Duração: 100 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Jackie
2017-02-06T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
critica|drama|Greta Gerwig|Natalie Portman|oscar 2017|Pablo Larraín|Peter Sarsgaard|
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