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Grandes Cenas: Nise - O Coração da Loucura
Grandes Cenas: Nise - O Coração da Loucura
Este é o típico post sob encomenda. Trago aqui a análise de uma cena do filme Nise - O Coração da Loucura a pedidos de meus alunos. A obra, dirigida por Roberto Berliner e protagonizada por Glória Pires, resgata a história da psiquiatra Nise da Silveira, que revolucionou o tratamento das doenças mentais no país.
Lidar com um tema tão tenso e com nuanças tão grandes não é fácil. Roberto Berliner se valeu de sua experiência como documentarista para construir uma atmosfera muito próxima do real em tela. São muitos momentos de contemplação, construção de pontos de vista, trabalho com luz natural e reforço do som ambiente. Nada no filme parece encenação, ainda que sejam atores ali, claro. É ficção, porém com uma naturalização que traz verdade para as cenas.
O tema da psiquê humana nos traz diversas possibilidades de catarses, ainda mais em um hospital psiquiátrico com personagens psicóticos em crise. Porém, é curioso como a cena escolhida pela maioria de meus alunos tem um impacto emocional não pelos doentes, suas catarses ou possíveis surtos, mas pela ação daqueles que são considerados saudáveis. Mais do que isso, os responsáveis por trazer a lucidez a esses doentes.
Falo da cena em que cachorros são encontrados mortos no pátio. É uma cena logo após a festa do São João, amanhecer na clínica. Duas tomadas do pátio vazio ainda com bandeirolas são vista em takes rápidos e vemos um plano conjunto de Adelina andando tranquilamente. O som ambiente constrói o tom da cena, simulando a tranquilidade aparente de mais um dia.
Apesar de ser utilizada uma "câmera na mão", à medida que Adelina anda os planos são se fechando, pois a personagem vai se aproximando da mesma. Quando chega em um plano americano, sua expressão muda, ela começa a andar mais rápido e a câmera a acompanha, mas, em determinado ponto, ela passa a câmera, que a pega em um plano lateral em close. Percebe-se sempre um leve eixo inclinado da câmera que está um pouco mais alta que a personagem, diminuindo-a.
Quando ela chega no pátio, a câmera circula a personagem e temos o primeiro corte que prepara para o grito: Mataram! Nesse momento entra uma música tensa que acompanhará toda a cena e irá subindo o volume aos poucos. Não sabemos ainda quem foi morto. A câmera gira em torno da personagem, que também gira pelo pátio, criando a sensação de desequilíbrio. Depois de alguns gritos, a porta se abre e a doutora Nise é a primeira a entrar no pátio, olhando para baixo com uma expressão de assombro. É interessante perceber que, apesar de Adelina continuar em quadro em primeiro plano, a médica é quem é o foco, já que está no quadrante superior direito, que puxa o olhar do espectador. E o atordoamento dela, uma médica, reforça a gravidade da situação.
Logo, outras pessoas começam a entrar em quadro, passando de um lado para o outro, com a câmera tentando acompanhar a mise-en-scène e, pela primeira vez, vemos o que causa todo esse desespero. Vários corpos de cães pelo pátio podem ser vistos. Os animais estavam sendo usados como apoio ao tratamento psiquiátrico, ajudando os pacientes na sociabilização e afeto. Vê-los todos mortos ali desestabiliza pacientes, médicos e enfermeiros, criando uma verdadeira confusão em cena.
Esta confusão é reforçada pelo aumento gradativo da música tensa e o som ambiente, choros, gritos, passos, em uma mistura de sons onde não é possível mais distinguir muita coisa. Mesmo os poucos diálogos são gritados, para conseguir se sobressair na mixagem, como a doutora Nise mandando a enfermeira Ivone se acalmar ou quando Lúcio tem o seu acesso de raiva. A câmera na mão, girando de um lado para o outro, com a imagem instável, ajuda também nessa sensação, colocando o espectador junto às personagens em cena.
Aos poucos, a câmera vai se aproximando de Lúcio, que está no chão em um acesso de raiva, grunhindo. A câmera está inclinada, quase em plongée, demonstrando ainda a fragilidade da personagem. Corta para um close de Adelina chorando e depois para a doutora Nise, que diz ao enfermeiro "Ajude Lúcio" e vai ajudar outro paciente. Nesse momento, a câmera já encontra o enfermeiro tentando apoiar Lúcio que já está em pé e a câmera estabiliza na altura dos dois, em plano médio, demonstrando que o paciente não está mais frágil como no take anterior. Vemos ainda outro take da doutora Nise com um paciente alisando o corpo de um cão, quando voltamos para Lúcio e o enfermeiro.
Lúcio está forte novamente. Em seu acesso de raiva, transformou a tristeza e o desespero, tornando-se agressivo. "Se era para tirar, pra que que deu?", ele grita e parte para cima do enfermeiro, jogando-o no chão e mordendo sua orelha. É interessante observar que o som ao redor parece se acalmar, focando em Lúcio e na trilha tensa em background. Ele se torna o motivo principal da cena, o clímax.
Mesmo no chão, junto com o enfermeiro, Lúcio é sempre demonstrado como forte, ameaçador para o enfermeiro que está vulnerável. Quando Lúcio pega a pedra para atacá-lo, a câmera enquadra o enfermeiro em plongée e Lúcio em contra-plongée, ou seja, um está diminuído em cena visto de cima para baixo e o outro aumentado, visto de baixo para cima. É também uma simulação de câmera subjetiva, como se mostrasse o olhar de Lúcio vendo o enfermeiro amedrontado e este vendo Lúcio ameaçador.
Lúcio bate na cabeça do enfermeiro com a pedra uma vez. Porém, antes que o paciente jogue a pedra novamente, a doutora Nise e outras pessoas chegam para impedir. Temos um plano detalhe da mão com a pedra, o som dos demais gritos retornam, retomando a confusão, mas são quase sufocados pela voz forte de Lúcio, que continua sendo enquadrado em uma câmera de baixo para cima. Enquanto o enfermeiro está no chão sangrando e vemos uma enfermeira e a doutora Nise chorando ao redor dele.
A cena termina assim, quando corta, já vemos uma porta fechada e a doutora Nise chegando para falar com um dos médicos do hospital. Não deixa de ser um encerramento simbólico, como se as portas estivessem novamente se fechando para esses pacientes. Tudo porque os demais médicos não conseguiram compreender o trabalho que a doutora Nise estava implantando naquele local. A capacidade de se conectar com aqueles "clientes", como ela preferia chamar, através de gestos simples como a convivência com animais.
O ato de matar tantos cães, além de criminoso por si só, ainda demonstra a extrema inabilidade de compreensão humana daqueles que se propunham a curar doenças mentais. Não por acaso, a cena impacta tanto. Nos faz pensar. E Roberto Berliner consegue, com sua câmera nervosa, nos colocar ali, junto com eles, incapazes de compreender como pode um ser humano ser capaz de algo tão atroz.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Grandes Cenas: Nise - O Coração da Loucura
2017-04-27T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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