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O Estranho que Nós Amamos
O Estranho que Nós Amamos
Ponto de vista é algo fundamental no cinema. Uma mesma história, com os mesmos plots points da narrativa, pode ser feito de forma completamente diferente. É o que aconteceu com O Estranho que Nós Amamos, filme baseado no livro de Thomas Cullinan que, em 1971, teve uma visão masculina nas mãos de Don Siegel e agora ganha uma visão feminina nas mãos de Sofia Coppola.
A história é a mesma, um soldado ianque ferido é abrigado em um colégio para moças na Virginia durante a guerra civil americana. Em vez de entregá-lo às tropas sulistas, elas cuidam dele, com a desculpa de não ser cristão entregá-lo à morte, mas acabam se afeiçoando ao rapaz, o que traz consequências para todos. O que não tem aqui e tinha em 1971 é uma visão extremamente maniqueísta da situação. Aqui, as mulheres não são personagens rasas, erotizadas em cenas de sexo ou repudiadas por disputarem o homem de maneira mesquinha e vingativa.
Há uma percepção que nos traz camadas de cada uma daquelas mulheres, tornando, inclusive a relação delas com o cabo John McBurney mais natural e crível. Em 1971, Clint Eastwood simplesmente beijava e derretia as mulheres com uma facilidade absurda. Aqui, Colin Farrell flerta e desperta desejos, mas sem banalizar as situações. O beijo em uma garotinha de 12 anos logo no início, por exemplo, foi retirado. Não que tenha sido retirado o fascínio que ele causa nas moças, Alicia, de Elle Fanning, sai no meio da noite para beijar o rapaz. Uma garotinha coloca brincos para ficar mais bonita ao dar um recado. Edwina, de Kirsten Dunst, sonha em fugir com ele. Mrs. Martha, interpretada por Nicole Kidman, tem um desconforto entre desejo e vergonha ao limpá-lo. Mas nada é banalizado nem simplificado.
A trama da dona da casa, Mrs. Martha, inclusive, é suavizada. Não existe mais a trama secundária de um irmão que antes administrava o espaço com ela e que em flashbacks dava-se a entender a relação incestuosa. Assim, ela torna-se uma mulher "normal" e não uma "pecadora" que já "cedeu" aos prazeres do sexo e por isso está mais susceptível aos encantos do estranho. Isso traz uma nova perspectiva para ela e suas atitudes na parte final da trama. Não existe também a escrava do primeiro filme, deixando para ela o trabalho pesado da limpeza e manutenção do casarão, o que não deixa de ser interessante.
Coppola foi criticada por alguns por esse ato, como estivesse embranquecendo o filme, o que não deixa de ser verdade. A diretora alegou que não queria tratar o tema da escravidão de maneira leve, o que faz sentido, já que ela está lá apenas como um costume, sem questionar sua posição de subalterna. Mas, talvez, pudesse haver uma forma de colocá-la como uma igual ali. Diante de uma situação de guerra, não seria inverossímil, mesmo se passando no Sul escravocrata.
De qualquer maneira, Sofia Coppola imprime à obra uma visão mais complexa de uma situação extrema, sem procurar vilãs ou mocinhas maniqueístas. E sem incentivar a disputa entre mulheres. Um mérito, já que imaginamos que este tenha sido seu maior desafio ao refilmar uma obra com uma visão tão machista. É como um estranho em meio a sua filmografia. E, fora a capacidade de subverter o olhar, chama a atenção a qualidade técnica da obra.
Não por acaso, rendeu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes. A maneira como Coppola constrói o olhar, fechada quase o tempo todo no casarão e seu jardim, é extremamente habilidosa. A penumbra que cobre as cenas, mesmo em sol forte traz belas metáforas. O enquadramento que busca em diversos momentos, como a casa de um lado e a árvore de outro, dando não apenas um efeito estético interessante, como a mensagem de que elas estão ali confinadas. É admirável. A trilha, ou a ausência dela, também ajuda a construir essa atmosfera realista e onírica ao mesmo tempo, já que sons de pássaros são uma constante.
O Estranho que Nós Amamos pode não estar entre os melhores filmes de Sofia Coppola, mas demonstra uma maturidade da diretora que consegue harmonizar os elementos técnicos e estéticos de uma maneira primorosa. E ainda vence o desafio de ressignificar situações através do olhar feminino para aquilo que parecia o sonho e o pesadelo de um homem heterossexual.
O Estranho que Nós Amamos (The Beguiled, 2017 / EUA)
Direção: Sofia Coppola
Roteiro: Sofia Coppola
Com: Nicole Kidman, Kirsten Dunst, Elle Fanning, Oona Laurence, Colin Farrell
Duração: 93 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
O Estranho que Nós Amamos
2017-08-06T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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