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Grandes Cenas: Cidade dos Sonhos (com spoiler)
Grandes Cenas: Cidade dos Sonhos (com spoiler)
Inspirada no recente retorno de Mulholland Drive aos cinemas, trago aqui uma das cenas mais icônicas desse belo filme de David Lynch: o Clube Silêncio. Na verdade, para analisar esse momento chave é preciso explicar um pouco mais do filme e seus mistérios. Então, nem é preciso reforçar que teremos spoilers, certo? Só continue se já viu ou não se importa com revelações essenciais da trama.
Na verdade, o título em português já traz um spoiler do significado de tudo aquilo que a cena do Clube Silêncio sintetiza. Por mais que possamos atribuir "cidade dos sonhos" a Los Angeles e tudo o que simboliza Hollywood, é também uma pista de que boa parte da narrativa que acompanhamos não passa do sonho de Diane Selwyn, corroída pela dor após mandar matar sua amada Camilla Rhodes.
O que acontece é que Lynch escolhe nos apresentar o filme a partir do sonho de Diana, tanto que temos uma cena inicial de uma cabeça indo em direção a um travesseiro. E quando Rita abre a caixa azul, fazendo a narrativa dar sua virada, o cowboy aparece em tela e diz "hora de acordar, garota", para, em seguida, vermos Diana acordando em sua casa.
Porém, acompanhando a narrativa pela ordem não-linear que o filme nos apresenta. Tudo o que sabemos até, então, é que Betty é uma moça vinda do interior para tentar a sorte como atriz em Los Angeles. Talentosa, ela consegue ótimos testes, mas se distrai com a chegada de uma estranha, Rita, na casa de sua tia. Sem memória e fugindo da máfia que quer matá-la, a moça recebe a ajuda de Betty para tentar desvendar o seu passado e o porque de sua vida correr risco.
A sequência que envolve o Clube Silêncio é exatamente aquela em que acontece a virada da trama e tudo que vemos e ouvimos ali, naquele palco, traz a explicação para isso. Então: "Silêncio", pois tudo é "ilusão".
A análise fílmica detalhada aqui será apenas da cena dentro do Clube Silêncio, porém, vamos relembrar toda a sequência. Rita e Betty acabaram de ter a primeira relação sexual, estão dormindo na cama, detalhe para a homenagem a Persona de Ingmar Bergman na posição das duas mulheres. Rita desperta e começa a bulbuciar palavras em espanhol "silencio, no hay banda, no hay orquestra". Betty acorda assustada e Rita a pede para ir a um lugar com ela, ainda que a outra proteste que são duas horas da manhã.
O local é exatamente o clube silêncio. Quando as duas entram, existem pessoas na plateia e um homem está parado no palco olhando para baixo. A construção de efeito é instigante. David Lynch nos apresenta o teto do teatro, seguido da visão geral do palco com sua característica cortina vermelha. Um contraplano nos mostra as duas descendo as escadas em câmera baixa, deixando-as em uma posição superior. Porém, quando o apresentador começa a repetir as palavras "no hay banda, no hay orquestra", ainda que as duas continuem sendo vistas de baixo para cima, nos parecem mais frágeis, não apenas pela expressão das atrizes.
Esse efeito de estranhamento construído as deixa com essa sensação de vulnerabilidade. Toda a apresentação no palco é para alertá-las de que tudo é uma ilusão. É uma metalinguagem que nos lembra um pouco o que Maingueneau chama de duplicidade do diálogo. Pois, ao mesmo tempo em que o apresentador alerta as duas personagens de que o que estão vivendo é uma ilusão, alerta a nós, espectadores de que tudo o que vimos até então, é uma ilusão. Não existe. Não apenas porque é um filme e traz os seus truques, mas também porque são imagens oníricas, por isso, tantas cenas desconectadas, tantos "absurdos", personagens que surgem e somem. Como os sonhos, que são fragmentos aparentemente ilógicos do nosso inconsciente.
Para comprovar sua teoria, o apresentador chama um músico que toca um trombone. Porém, ele para levantando as mãos e a música continua, comprovando a ilusão. Betty e Rita assistem a tudo atordoadas e de mãos dadas. O apresentador continua fazendo sua demonstração, brincando com o som, como se regesse uma orquestra invisível. Tudo em um plano médio, em uma câmera levemente alta, simulando a visão das duas na plateia. Quando o ponto de vista muda, para uma câmera baixa que nos mostra uma mulher de cabelo azul no camarote, há uma mudança significativa. Estamos sendo apresentados a mais um elemento que será explicado apenas depois, o significado da cor azul, que aqui está relacionada a morte. A mulher também pode ser interpretada como uma referência ao presidente Abraham Lincoln que foi assassinado em um teatro.
Tudo para nos dar informações de algo que ainda não nos foi revelado: Diana (que sonha ser Betty) mandou matar Camila (que no sonho é a desmemoriada Rita) e uma chave azul é o código para confirmar que o serviço foi feito. Nesse momento, raios ecoam no teatro e Betty começa a tremer, em uma referência a seu corpo que está lutando para acordar, enquanto seu inconsciente não quer encarar a realidade, preferindo ficar ali, naquele espaço de sonho onde ela pode ter sua amada só para si. E onde ela é a estrela. O apresentador some, mas antes faz uma expressão de vitória, e todo o espaço fica azul. Mesmo que Betty pare de tremer, algo aconteceu.
Um outro apresentador chega e chama a cantora Rebekah Del Rio que entoa uma triste canção de amor. A letra de Llorando (Chorando) é uma tradução do sentimento de Diana, que sofre com saudades da amada que na vida real a estava trocando pelo cineasta Adam. Ela até tentou ficar bem como Betty, mas quando Rita surge em sua vida, tudo novamente vem à tona. Ambas choram ouvindo a cantora e a câmera de David Lynch vai se aproximando cada vez mais dos rostos delas, ampliando a emoção do choro e a empatia da plateia. Até que a cantora morre no palco, mas a música, claro, continua.
Não deixa de ser mais uma referência à morte de Camila, que está ali agora, como Rita. Lynch dá um close em cada uma em separado, como indicando a separação próxima, mostra a cantora sendo retirada e depois retorna para as duas juntas novamente na plateia, mas agora já com um plano próximo, não mais em close. Novo close das duas em separado e um plano detalhe da mão de Betty na bolsa de onde retira a caixa azul com a fechadura igual a da chave que Rita tinha na sua bolsa. Uma música de suspense extra-diegética surge, construção o efeito de tensão. Novamente as duas são vistas em separado, depois um plano conjunto com um olhar cúmplice. Elas sabem o que aquilo significa e voltam para a casa para testar a chave.
E todos que viram o filme sabem que Rita abre a caixa azul com a chave e "entra" nela, sendo a virada do filme para nos apresentar Diana, Camila e todas as explicações que já foram ditas aqui.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Grandes Cenas: Cidade dos Sonhos (com spoiler)
2017-12-04T08:25:00-03:00
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