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Cinefilia em Café com Canela
Cinefilia em Café com Canela
Em determinada cena do filme Café com Canela, as duas protagonistas falam sobre cinema. Margarida explica a Violeta por que ela considera aquele local mágico e diz que quando as luzes acendem e fica o vazio da tela, quem deixa a cadeira não é a mesma pessoa que sentou nela.
Soa estranha àquela inserção quase gratuita na narrativa, parecendo mais uma declaração de amor dos diretores, ou do roteirista, do que uma fala autêntica das personagens. Pelo simples motivo de que a cinefilia não é desenvolvida na trama. Ainda que Margarida seja uma professora e apareça na sala de cinema em algumas cenas, é como se aquela cena caísse de pára-quedas.
Ainda assim, aquilo evoca tantos significados que, em uma segunda visita ao filme, acabou sendo a cena que mais se destacou. Uma cena estranha que acaba traduzindo muito do impacto que Café com Canela tem causado desde sua estreia em Brasília. E que na sessão especial realizada no Glauber Rocha no último dia 19, deixou ainda mais claro.
Café com Canela é um filme de afeto, como a própria diretora Glenda Nicácio pontuou, não é uma obra que fale sobre questões raciais. Ela apenas coloca pessoas negras, mulheres em especial, em situações cotidianas, vivendo conflitos que poderiam ser de qualquer um. Mas, exatamente por isso, o filme acaba tendo uma importância simbólica indescritível e fala mais sobre a segregação que personagens negras sofreram em toda a história do cinema.
Ter duas mulheres negras sentadas na sala da casa fazendo faxina e falando sobre cinema, é então, o ápice disso. Esse cinema e essa cinefilia que foram construídas pela visão do homem branco cis, onde mulheres sempre foram objetos de fetiche e mulheres negras ainda mais objetificadas em corpos sensuais, onde pouco ou nada importavam seus anseios.
É como se Café com Canela requisitasse aqui o direito à cinefilia dessas mulheres. Também capazes de se emocionar e se modificar pelas experiências da tela grande. Que também trazem conflitos próximos a quaisquer seres humanos. E podem viver histórias que até falem de dor e perdas, mas com um viés positivo. Que encontrem colo e apoio umas nas outras e também em seus companheiros. E falarem sobre isso enquanto fazem a faxina de casa de Margarida também é simbólico.
Há uma força especial na obra de Glenda e Ary Rosa porque ela evoca sentimentos diversos, vozes muitas vezes caladas e que encontram espaço naquele cenário, naquela tela. Inclusive o próprio Recôncavo, que andava esquecido e com força da universidade de cinema volta ao cenário cultural baiano, vide a grande quantidade de curtas que surgem de lá. Então, é legítimo que se utilizem da metalinguagem para buscar diálogo com os mais diversos espectadores.
No bate-papo após a sessão, falou-se muito sobre essa mulher negra tantas vezes desqualificada pela sociedade que exige que ela seja sempre forte, como lamentou Conceição Miranda. Mas também sobre a depressão, doença tantas vezes negligenciada e chamada de frescura. E da importância de estar atento ao outro e suas necessidses. Ainda sobre a importância da figura do professor e da relação de afeto com seus alunos.
Tudo isso é abordado em Café com Canela, com uma verdade que comove e impacta independente de questões técnicas que ainda estejam sendo amadurecidas pelos estreantes diretores. A seleção do segundo longa-metragem da dupla para o Festival de Brasília demonstra isso. É preciso celebrar Café com Canela e tudo que ele simboliza.
Mais do que isso, respeitar a emoção que ele provoca nas mais diversas plateias. Seja no Cine Brasília 2018 de onde saiu premiado pelo júri popular, ou seja no Glauber Rocha onde arrancou choros e depoimentos emocionados, não há como negar que ele se comunica com seu público. E nisso está a verdadeira magia do cinema citada por Margarida, capaz de transformar aquele que se permite mergulhar em sua tela. E vida longa ao cinema do Recôncavo Baiano.
Café com Canela (Café com Canela, 2017 / Brasil)
Direção: Glenda Nicácio e Ary Rosa
Roteiro: Ary Rosa
Com: Valdineia Soriano, Aline Bruno, Babu Santana, Aldri Anunciação, Arlete Dias, Guilherme Silva, António Fábio, Dona Dalva Damiana de Freitas, Michelle Mattiuzzi
Duração: 102 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Cinefilia em Café com Canela
2018-08-27T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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