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Histórias que o nosso cinema (não) contava (reflexões)

Histórias que o nosso cinema (não) contava (reflexões)

No dia 23 de agosto, estreia nos cinemas o filme Histórias que o nosso cinema (não) contava. Dirigido por Fernanda Pessoa, a obra resgata filmes da pornochanchada em uma montagem crítica, fazendo com que as obras conversem e revelem temáticas que vão além do erótico atribuído ao nebuloso gênero da nossa história cinematográfica.

Em debate produtivo realizado em Salvador no último dia 16, a diretora ressaltou em sua fala que seu filme não é uma crítica ferrenha, muito menos uma homenagem aos filmes da Boca do Lixo, mas que ela busca compreender essa época e toda a complexidade que a envolve. Mediado pelo crítico João Paulo Barreto, o debate contou ainda com a presença da pesquisadora Tatiana Trad, que está fazendo seu doutorado sobre o mesmo tema e foi interessante perceber as visões complementares das duas.

Chama a atenção, em primeira instância, termos ali duas mulheres pesquisadoras de um tema tão controverso que tinha na utilização do corpo da mulher um objeto. E o mais instigante nesse recorte é exatamente a contradição que esses filmes evocam em todos os aspectos. É um retrato de um período de nosso país e de uma cultura machista que perdura até hoje, é verdade. Mas traz em si outros aspectos que chamam a atenção, como o próprio posicionamento crítico diante da ditadura militar.

Histórias que o nosso cinema (não) contava (reflexões)O filme de Fernanda faz um recorte apenas com os filmes dos anos 70, período em que a ditadura e a censura foram mais violentas com o AI-5 e todas as consequências desse ato. Uma certa corrente defende que a erotização seria uma espécie de escudo para poder inserir temas políticos nas obras sem que a censura desse atenção a eles. A cineasta considera isso um mito simplista ainda que conte que, observando os processos de censura das obras, os pontos censurados sempre foram relacionados a questões sexuais, não às questões políticas. Tatiana Trad também não concorda com essa visão, ainda que tenha sido a porta de entrada para sua pesquisa.

De fato, não podemos alegar que aqueles filmes usavam a erotização de maneira “genial”, para burlar a censura, ainda que isso acontecesse. Alguns diálogos vistos no filme de Fernanda provavelmente não passariam pela censura se estivessem em um filme com um tratamento mais sério e a chancela de um Cinema Novo, por exemplo. Mas não era esse o único objetivo dos produtores que se aproveitavam da erotização para atrair público e usavam o corpo feminino de maneira agressiva e cruel em diversos aspectos, inclusive com cenas de tortura.

Ainda nesse tema, um dos participantes da plateia chamou a atenção para a ironia do texto e crítica velada, em especial em uma cena sobre o assassinato de Vladimir Herzog. Aparentemente, o filme mostra a versão oficial da ditadura de que ele teria se suicidado, porém o guarda observando a cena comenta “Mas onde foi que ele arrumou essa gravata?” enquanto a câmera dá um zoom na gravata do próprio inquisidor demonstrando ser igual. É essa constante contradição e oscilação entre a direita e a esquerda que faz o estudo tão rico e aprofundado.

Outro participante chamou a atenção para a qualidade dos filmes, feitos de maneira independente com poucos recursos que acabavam sendo de baixa qualidade técnica e estética. A questão do som, por exemplo, era o que mais reclamava-se. As bilheterias acabavam sendo em função da erotização mesmo, por isso, os filmes acabaram com essa fama. Fernanda Pessoa reforçou que o sistema de produção era impressionante, com acordos já feitos com os próprios exibidores e que muitos produtores que enriqueceram com os filmes começaram como técnicos simples como eletricista. Era um tipo de indústria que hoje não vemos no cinema nacional, por exemplo.

Tudo isso demonstra o quanto qualquer generalização sobre os filmes da pornochanchada ou mesmo sobre esse período do cinema brasileiro não traduz a verdade. E o que mais impressiona é que essa generalização perdura até hoje, fazendo o censo comum continuar afirmando que cinema nacional só tem pornografia e é de má qualidade, inclusive o som que continua sendo apontado como um grande problema técnico.

Essa visão parece cristalizada lá nos anos 70 e 80, não vendo toda a variedade e riqueza que o nosso cinema tem se aventurado. Não que esteja perfeito, mas há muitas obras de excelente qualidade e dos mais variados temas, formatos e abordagem. A própria existência desse documentário, investigando e trazendo à luz reflexões como essas é uma prova disso. Então, só nos resta ir aos cinemas prestigiá-los.


Histórias que o nosso cinema (não) contava (2017 / Brasil)
Direção: Fernanda Pessoa
Roteiro: Fernanda Pessoa
Duração: 80 min.

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