
No dia 23 de agosto, estreia nos cinemas o filme Histórias que o nosso cinema (não) contava. Dirigido por Fernanda Pessoa, a obra resgata filmes da pornochanchada em uma montagem crítica, fazendo com que as obras conversem e revelem temáticas que vão além do erótico atribuído ao nebuloso gênero da nossa história cinematográfica.
Em debate produtivo realizado em Salvador no último dia 16, a diretora ressaltou em sua fala que seu filme não é uma crítica ferrenha, muito menos uma homenagem aos filmes da Boca do Lixo, mas que ela busca compreender essa época e toda a complexidade que a envolve. Mediado pelo crítico João Paulo Barreto, o debate contou ainda com a presença da pesquisadora Tatiana Trad, que está fazendo seu doutorado sobre o mesmo tema e foi interessante perceber as visões complementares das duas.
Chama a atenção, em primeira instância, termos ali duas mulheres pesquisadoras de um tema tão controverso que tinha na utilização do corpo da mulher um objeto. E o mais instigante nesse recorte é exatamente a contradição que esses filmes evocam em todos os aspectos. É um retrato de um período de nosso país e de uma cultura machista que perdura até hoje, é verdade. Mas traz em si outros aspectos que chamam a atenção, como o próprio posicionamento crítico diante da ditadura militar.

De fato, não podemos alegar que aqueles filmes usavam a erotização de maneira “genial”, para burlar a censura, ainda que isso acontecesse. Alguns diálogos vistos no filme de Fernanda provavelmente não passariam pela censura se estivessem em um filme com um tratamento mais sério e a chancela de um Cinema Novo, por exemplo. Mas não era esse o único objetivo dos produtores que se aproveitavam da erotização para atrair público e usavam o corpo feminino de maneira agressiva e cruel em diversos aspectos, inclusive com cenas de tortura.
Ainda nesse tema, um dos participantes da plateia chamou a atenção para a ironia do texto e crítica velada, em especial em uma cena sobre o assassinato de Vladimir Herzog. Aparentemente, o filme mostra a versão oficial da ditadura de que ele teria se suicidado, porém o guarda observando a cena comenta “Mas onde foi que ele arrumou essa gravata?” enquanto a câmera dá um zoom na gravata do próprio inquisidor demonstrando ser igual. É essa constante contradição e oscilação entre a direita e a esquerda que faz o estudo tão rico e aprofundado.

Tudo isso demonstra o quanto qualquer generalização sobre os filmes da pornochanchada ou mesmo sobre esse período do cinema brasileiro não traduz a verdade. E o que mais impressiona é que essa generalização perdura até hoje, fazendo o censo comum continuar afirmando que cinema nacional só tem pornografia e é de má qualidade, inclusive o som que continua sendo apontado como um grande problema técnico.
Essa visão parece cristalizada lá nos anos 70 e 80, não vendo toda a variedade e riqueza que o nosso cinema tem se aventurado. Não que esteja perfeito, mas há muitas obras de excelente qualidade e dos mais variados temas, formatos e abordagem. A própria existência desse documentário, investigando e trazendo à luz reflexões como essas é uma prova disso. Então, só nos resta ir aos cinemas prestigiá-los.
Histórias que o nosso cinema (não) contava (2017 / Brasil)
Direção: Fernanda Pessoa
Roteiro: Fernanda Pessoa
Duração: 80 min.