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A Vida Invisível
A Vida Invisível
Em uma sociedade paternalista e quase sempre machista, a sensação é de que a mulher não existe enquanto ser individual, estando sempre em função de uma figura masculina. Somos sempre mãe, filha, irmã, esposa de alguém, o que dá a sensação aos homens de que podem dispor de nossas vidas, mesmo que com a desculpa de proteção ou orientação. Uma sensação que perdura ainda hoje, no Brasil de 2019, imagine então em 1950?
Baseado no livro de Martha Batalha, A Vida Invisível narra a história de duas irmãs que, na década de 1950, são invisibilizadas pelos homens que a cercam. Eurídice é uma garota tímida que sonha em ser pianista, porém se contenta em seguir a sina da maioria das mulheres daquela época, casando, tendo filhos e vivendo para a família. Já sua irmã Guida, extrovertida, não tem medo de se arriscar, entre paixão e rebeldia. Isso porém tem um preço e ela vai precisar se reinventar para sobreviver em um mundo cruel com mulheres que não se encaixam no padrão.
Através da busca de uma pela outra, vamos acompanhando suas trajetórias em paralelo, buscando os pontos de interseção que são trabalhados a partir de uma sequência em que as duas passeiam juntas e através das cartas escritas por Guida. É curioso perceber como as duas aparecem pouco tempo em tela juntas, mas há uma ligação constante, trabalhada entre os contrapontos de acontecimentos e a expectativa de reencontro. Nenhum dos caminhos é fácil, isso também as ligam de uma maneira profunda e nos faz refletir sobre todas as mulheres que passam ou passaram por nossas vidas.
Composto por grandes interpretações e entrega em uma obra onde a construção emocional é o efeito predominante, Carol Duarte acaba se destacando. A atriz, que interpreta Eurídice, tem um trabalho corporal que impressiona. Ela não parece confortável em seu próprio corpo, construindo sensações em cada gesto que só se harmoniza completamente quando senta no piano para tocar, como se a própria personagem só existisse quando estivesse ali.
Não são poucas as cenas que em ela se destaca, porém é possível citar a noite de núpcias com Antenor, interpretado por Gregório Duvivier, uma das mais fortes da obra. O trabalho de mise-en-scène e fotografia ajudam na construção da tensão, como em um momento em que ele é enquadrado em primeiro plano de costas e é possível vê-la encolhida no canto da banheira. Isso representa muito da relação de dominação do homem sobre a esposa, em especial naquela época.
Ainda que apareça pouco, a participação de Fernanda Montenegro também é fundamental para construção dessa Eurídice e para o arco emocional da trama. O trabalho da atriz se destaca pela aproximação corporal com a jovem, nos dando a sensação de ser a mesma pessoa e também pela capacidade de expressão das emoções através de pequenos gestos e olhares que acabam resumindo muito das sensações de toda uma geração que se acostumou a ser calada e invisibilizada, quase que morrendo em vida.
Com toda a força e belo trabalho das atrizes, Eurídice Gusmão, no entanto, não é protagonista absoluta da trama, como indicaria o livro. Na verdade, o filme acaba dando até mais espaço para Guida, construindo uma ampliação eficiente, não por acaso o título da obra foi reduzido para A Vida Invisível, pois não se trata apenas da invisibilidade de Eurídice, mas que todas as mulheres que ousem ou não desafiam o sistema estabelecido. Talvez por isso, Guida acabe aparecendo mais em tela e traga consigo grandes angústias como a cena do banheiro do bar ou a do depósito. Ao mesmo tempo, é com ela que se acende uma luz de esperança através da sororidade de Filomena. O trabalho delicado de construção de amizade e amor feito por Julia Stockler e Bárbara Santos enriquecem ainda mais o efeito esperado da obra.
A Vida Invisível não é um filme fácil. Um melodrama intenso com momentos marcantes que traz um cuidado em cada detalhe. Karim Aïnouz nos entrega uma obra madura que nos faz refletir sobre diversos aspectos. Mas, acima de tudo, nos faz querer novas vozes femininas diante de uma realidade ainda tão masculina.
A Vida Invisível (A Vida Invisível, 2019 / Brasil)
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Murilo Hauser, Inés Bortagaray, Karim Aïnouz
Com: Fernanda Montenegro, Carol Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier, Bárbara Santos, Nikolas Antunes
Duração: 139 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
A Vida Invisível
2019-11-05T10:10:00-03:00
Amanda Aouad
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