A síndrome do gênio incompreendido que não tem paciência para iniciantes e exige demais dos outros a ponto de cometer assédio moral não é novidade no cinema. Basta lembrar de filmes recentes como Whiplash e Cisne Negro. Da mesma forma que a ideia de Lolita ainda permeia a mente de artistas em busca de sua musa. Anna, novo filme de Heitor Dhalia traz essas duas questões entrelaçadas e é uma pena que não traga uma leitura mais crítica sobre isso.
Anna
A síndrome do gênio incompreendido que não tem paciência para iniciantes e exige demais dos outros a ponto de cometer assédio moral não é novidade no cinema. Basta lembrar de filmes recentes como Whiplash e Cisne Negro. Da mesma forma que a ideia de Lolita ainda permeia a mente de artistas em busca de sua musa. Anna, novo filme de Heitor Dhalia traz essas duas questões entrelaçadas e é uma pena que não traga uma leitura mais crítica sobre isso.
Na trama, o diretor teatral Arthur tenta remontar a peça Hamlet dez anos após uma tentativa fracassada. Obcecado pela perfeição, exige demais de sua trupe, em especial da jovem Anna, escalando uma tensão que mistura realidade e ficção de maneira perigosa.
Humilhações públicas, gritos, técnicas de choque, o diretor utiliza de tudo, em muitos momentos lembra a proposta de preparadores de elenco que acreditam que a emoção tem que ser sentida na pele da atriz para passá-la a personagem. Entre gritos de “não vejo verdade”, “você não entendeu nada” e “mais profissionalismo”, o excêntrico diretor é admirado por uns e odiado por outros que ousam contestar seus métodos.
Algo que chama a atenção é exatamente a obra ser sob o ponto de vista de Arthur, por mais que se chame Anna. Ainda que a chave vire no final, a sensação é de que tudo valeu a pena, tudo em nome da arte. Até mesmo um estupro em pleno palco, que é claramente colocado, já que Dhalia mistura na montagem cenas do ato sexual, de Anna deitada no chão do tablado e dela em casa chorando desesperada.
A montagem, por sinal, é extremamente hábil nessa busca de flashes do processo criativo, conduzindo muitas vezes tempos distintos para construir reflexões e sensações diversas. Algo que nos lembra um pouco o início de carreira do diretor em filmes como Nina. Essa mistura entre fantasia e realidade, conduzida entre fragmentos aparentemente soltos da narrativas que se ressignificam na junção nos envolve.
É envolvente também a condução da direção explorando o palco do teatro de maneira hábil através dos enquadramentos e pontos de vista, inclusive na visualização da platéia vazia preenchida apenas pelo grupo no ensaio. Mesmo as cenas que ocorrem fora do ambiente teatral trazem um pouco dessa aura artística executada na fotografia uniforme e nos cenários que nos parecem limpos e organizados quase como um palco. Mesmo um bar lotado traz uma mise en scène peculiar que nos dá a dimensão daquelas personagens estarem ali sempre encenando de alguma maneira.
O duelo entre a tímida e assustada Anna em busca da Ofélia ideal e o diretor carrasco que deseja aquela menina por mais que grite que ela não consegue é bem conduzido. A novata Bela Leindecker e o veterano Boy Olmi se entregam à performance intensa e são bem explorados por Dhalia que parece construir esse jogo de sedução e assédio buscando também o equilíbrio entre o choque e o respaldo. Mas, como foi dito, a visão de Arthur, no final, parece vencer o embate. Em especial pela figura da atriz que seria a Ofélia de dez anos antes, pouco explorada na trama, mas que está ali, retornando em outro papel, apoiando e dando respaldo à situação parecida vivida no passado.
Em pleno 2021, é incômodo que esse discurso ainda seja válido. É complexo ver o reforço de que todas as mulheres querem ser Ofélia, como foi apontado por um dos atores da peça. É desconfortável demonstrar que ainda nos vejam nessa papel de amor incondicional, disponível para tudo, seja para Hamlet, para o diretor excêntrico, seja para narrativas que nos coloquem ali como objetos disfarçadas de protagonistas.
Anna (2021, Brasil)
Direção: Heitor Dhalia
Roteiro: Heitor Dhalia, Nara Mendes
Com: Boy Olmi, Bela Leindecker, Tulio Starling, Nash Laila
Duração: 106 min.

Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Anna
2021-06-25T14:38:00-03:00
Amanda Aouad
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