“Ninguém quer se prostituir. A justiça tem que ser a favor da prostituta e contra a prostituição”. Ao ouvir essa frase de um colega, Simone, protagonista da obra, questiona se ele falaria a mesma coisa de uma empregada doméstica. Nessa discussão, está o cerne da obra de Julia Murat, grande vencedora do Festival de Locarno, na Suíça de 2022.
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Regra 34
“Ninguém quer se prostituir. A justiça tem que ser a favor da prostituta e contra a prostituição”. Ao ouvir essa frase de um colega, Simone, protagonista da obra, questiona se ele falaria a mesma coisa de uma empregada doméstica. Nessa discussão, está o cerne da obra de Julia Murat, grande vencedora do Festival de Locarno, na Suíça de 2022.
Por mais natural que seja, o sexo sempre foi um tabu social, reprimido, escondido e desconfortável de se falar. Em uma sociedade patriarcal e machista, isso é ainda pior ao se tratar do desejo feminino. Historicamente, a mulher sempre foi objeto, nunca sujeito. Chama a atenção, então, Regra 34, uma obra na qual a protagonista, é uma mulher negra que se divide entre suas aulas de defensoria pública e seu canal em que se apresenta como camgirl.
Tal qual Catherine Deneuve, em A Bela da Tarde, de Luis Buñuel, Simone não precisa necessariamente se prostituir. Há um prazer na prática, ainda que virtual, assim como a submissão ao desejo do outro e o flerte com o perigo e a dor que vai se aprofundando com as práticas BDSM. Esse aparente contraste com sua figura feminista, que busca lutar pelos direitos das mulheres, na verdade, esconde camadas bem mais tênues que dialogam diretamente com o esse histórico de que mulher não sente prazer ou que seu desejo está muito mais ligado ao afeto.
Julia Murat não se furta a explorar as sensações e quebrar esses tabus em relação ao sexo e ao desejo feminino, expondo desde a primeira cena o jogo entre Simone e seus espectadores de maneira livre e envolvente. Da mesma maneira que explora a relação da protagonista com seus amigos Coyote e Lucia de maneira progressiva, construindo essas noções de prazer, experiências e limites que ajudam a ir construindo o perfil da personagem e nos aproximando dela aos poucos, como se fossemos mesmo descascando as camadas das capas sociais que a vestiam.
A maneira como a mise-en-scène organiza aquela turma para que a câmera enquadre os momentos-chaves nos fazendo perceber coisas sem precisar ser dito é um dos pontos fortes da obra. É curiosa a visão construída a partir dessa mulher preta, tantas vezes objetificada, enquanto sujeito. Não apenas em Simone, mas também em algumas de suas colegas advogadas que questionam o status quo daquela realidade imposta através de leis e discussões que lhes parecem infrutíferas em uma sociedade desigual e com tantas questões que não podem ser generalizadas em leis e regras passadas por aqueles professores, em sua maioria homens brancos.
Ao mesmo tempo, há um risco tênue nos questionamentos de Simone que se traduzem nesse duplo cibernético. Da mesma forma em que ela questiona quem pode julgar o seu prazer, passa a questionar seu próprio papel diante do caso de uma senhora que vive uma relação abusiva e até que ponto isso é negativo ou não. Quem pode, de fato, julgar o sofrimento do outro? Há um perigo nesses questionamentos e discursos que podem nos fazer retroceder, em vez de avançar nas questões feministas. Porque a grande questão do filme é que ele não se propõe a responder nada, joga com a plateia, para que ela reflita e encontre suas próprias respostas, trazendo recepções e interpretações diversas.
Diante de cargas dramáticas tão densas e cenas de tanta exposição, há de se elogiar o trabalho de direção de atores e a atuação do trio principal, vivido por Sol Miranda, Lucas Andrade e Lorena Comparato. Há uma entrega e uma intimidade construída entre eles que nos faz acreditar naquela história, por mais polêmica que possa ser. A participação de Isabela Mariotto como uma espécie de guru de Simone também é destaque nesse sentido, em especial, quando as duas se encontram presencialmente.
Regra 34 é um jargão da internet, que nos diz que se algo existe, há uma versão pornô em algum lugar da web. Ao escolher essa expressão como título de sua obra, Julia Murat já dava indícios do que queria tratar. A advogada Simone e sua versão pornô se fundem em tela para nos lembrar que essa regra também tem suas camadas e não cabe a nós julgar os desejos reprimidos ou não de cada um.
Regra 34 (Brasil, 2022)
Direção: Júlia Murat
Roteiro: Júlia Murat, Gabriel Bortolini, Roberto Winter
Com: Sol Miranda, Lucas Andrade, Lorena Comparato, Isabela Mariotto
Duração: 100 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Regra 34
2022-11-08T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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