Quando nos aventuramos pelo cenário do cinema latino-americano, é impossível ignorar o notável legado de filmes que surgiram ao longo das últimas décadas. No entanto, quando mergulhamos no Brasil, uma obra em particular se destaca como uma pérola escondida, revelando a riqueza e complexidade do cinema nacional. Abril Despedaçado é um mergulho nas entranhas do sertão profundo do Brasil do início do século XX, e uma jornada que explora a essência da honra, da vingança e do ciclo interminável de conflito que permeia as vidas de duas famílias.
O diretor Walter Salles, já renomado por seu trabalho em Central do Brasil, nos guia por essa narrativa poética e sombria, transportando-nos para um mundo árido, onde a secura do terreno se assemelha à falta de esperança que aflige os personagens. É nesse ambiente inóspito que somos apresentados a Tonho, interpretado por Rodrigo Santoro, um jovem que carrega o fardo de uma vingança que há gerações ensanguenta o solo daquele sertão. Santoro entrega uma atuação crua e emocional, revelando as profundezas da psicologia de um homem condenado ao ciclo de morte e vingança.
Mas a verdadeira jóia do filme é a adição do personagem do Menino, interpretado por Ravi Ramos Lacerda, um jovem paraibano com apenas 13 anos à época. Sua presença é um fio de esperança em um mundo imerso na escuridão da tradição. O Menino, apesar de não possuir um nome, personifica a resistência à conformidade com as tradições que aprisionam Tonho e sua família. Ele é o símbolo da imaginação e da possibilidade de um futuro diferente, um contraponto à desesperança que permeia o sertão. Se em terra de cegos quem tem um olho é rei, o Menino é o guia que permite a Tonho enxergar além das fronteiras opressivas do Riacho das Almas.
O filme também nos leva a um cenário onde o trabalho árduo, a rapadura como única fonte de subsistência e a ausência de perspectivas dão origem a uma luta cruel pela honra entre as famílias Breves e Ferreira. A vingança é a única lei que persiste naquele lugar, uma tradição estúpida que, no entanto, tem sua lógica arraigada. Salles, junto com seu elenco, nos lembra das raízes culturais que moldaram a região e que ainda ecoam nas vidas dos personagens.
A fotografia do filme merece destaque especial. A equipe de produção transforma o árido sertão nordestino em um espetáculo visual, onde o contraste entre a terra marrom e o céu azul infinito é uma metáfora para a dualidade das vidas dos personagens. Os momentos do pôr-do-sol e da noite são capturados de maneira magistral, evocando a passagem do tempo, que, assim como os bois que giram na bolandeira, parece seguir um curso próprio e implacável.
No entanto, Abril Despedaçado não está isento de críticas. O filme, embora aborde a luta interminável das famílias, poderia ter se aprofundado ainda mais nesse conflito. Fica a sensação de que a história de Tonho, apesar de convincente, acaba por ofuscar a trama da rivalidade, que também possui potencial para exploração. No entanto, esse ponto negativo é superado pelas atuações fortes, pela direção sensível de Salles e pela riqueza da narrativa.
Abril Despedaçado é uma obra cinematográfica que ultrapassa as fronteiras do sertão nordestino e nos leva a uma jornada universal de reflexão sobre tradição, honra, vingança e, acima de tudo, a possibilidade de romper o ciclo interminável de conflito. O filme é um testemunho da riqueza do cinema brasileiro, com atuações poderosas e uma fotografia deslumbrante. É um lembrete de que, em um país tão vasto e diversificado, as histórias que emanam de suas entranhas podem ser tão profundas quanto o próprio sertão. Abril Despedaçado é um filme que merece um lugar de destaque no cânone do cinema nacional e internacional.
Abril Despedaçado (2001 / Brasil)
Direção: Walter Salles
Roteiro: Karim Aïnouz, Sérgio Machado
Com: Rodrigo Santoro, José Dumont, Rita Assemany
Duração: 90 min.