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Grande Sertão
Desde que foi anunciada a adaptação de Grande Sertão: Veredas por Guel Arraes, a produção gerou curiosidade. Afinal, é uma das grandes obras de nossa literatura e o diretor já tem mérito de boas adaptações como da peça O Auto da Compadecida. Ainda mais com roteiro em parceria com Jorge Furtado. A trajetória por festivais internacionais com o prêmio de direção, ampliaram a expectativa. O fato é que Grande Sertão tem um estranhamento e ao mesmo tempo uma capacidade de envolver que pode dividir opiniões. Inclusive por alguns assuntos que geram discussões e controvérsias. Mas tem seus méritos.
Quando Guimarães Rosa lançou o livro em 1956, a questão trans não era discutida. Diadorim, então, era uma mulher que “precisou” se vestir de homem para andar por um mundo de homens. O tema nem mesmo era levantado em 1985 quando a Rede Globo lançou uma minissérie baseada na trama, tanto que a produção teve que esconder a identidade da atriz Bruna Lombardi durante as gravações para ampliar a surpresa. Hoje, os tempos são outros, e o filme de Guel Arraes acaba ficando em um meio termo que, se incomoda em algumas passagens e na escalação da atriz Luisa Arraes (não pela atuação da atriz, que está ótima, é importante pontuar), avança em outros, principalmente, nas falas de Nhorinhá, personagem da atriz Luellem de Castro.
Outra questão, é a adaptação em si. Transpor o cenário do sertão nordestino para uma área urbana distópica, com um muro que lembra algumas obras de ficção científica, ainda que se diga no tempo presente, não é um problema em si. Até porque a disputa entre tráfico, milícias, políticos e polícia tem seus pontos de encontro com a guerra de outrora. O que causa estranhamento é a manutenção das falas do séculos passado, carregando o texto em dramaticidade que não é mais vista em dramaturgias modernas e que se assemelha um pouco ao que Baz Luhrmann fez com Romeu e Julieta em 1997, levando-os para o Novo México. Isso pode afastar o grande público e sua imersão na trama.
A fotografia sem muita saturação e com luzes estouradas nos remete ao sertão de alguma maneira. Ao mesmo tempo em que o cenário com uma direção de arte que valoriza o concreto a traz para uma atmosfera árida próxima a filmes como Mad Max, Jogos Vorazes ou Divergente. Lembra também em alguns aspectos o filme A Máquina, de João Falcão. E é curiosa a maneira como a direção nos faz transitar por esse mundo ficcional que ao mesmo tempo traz diversas referências, lembra também nossa própria realidade e, ao mesmo tempo, parece tão original.
A escolha do elenco traz também pontos positivos e outros nem tanto. O casal protagonista vem dos palcos. Tanto Caio Blat quanto Luisa Arraes interpretaram Riobaldo e Diadorim no teatro, o que ajuda na imersão de ambos nos papéis. Há verdade e dramaticidade em ambos, ainda que seja justa a reclamação da classe sobre a busca por atores trans poderem interpretar personagens como Diadorim. Eduardo Sterblitch é outro destaque, encarnando um Hermógenes asqueroso e detestável que ajuda no embate. Já o Zé Bebelo de Luis Miranda traz pontos cômicos questionáveis, ainda que o alívio seja também necessário à obra e que o ator brilhe a maior parte do tempo, roubando a cena em diversos momentos. Rodrigo Lombardi é que não convence tanto como Joca Ramiro.
Paradoxalmente, essas escolhas trouxeram um efeito positivo para a trama. Uma estrutura épica, com atmosfera das grandes tragédias, bebendo na dramaturgia teatral e ao mesmo tempo construindo uma linguagem moderna que nos envolve e emociona. Não há como negar que a história nos prende. Mesmo com todo rebuscamento do texto, não fica chato nem cansativo. Há também uma lógica operística que encanta, principalmente, nas cenas de embate. O amor de Riobaldo e Diadorim é forte, é trágico, é repleto de preconceitos que já poderiam ter caído por terra. E, principalmente, não é possível porque ainda precisamos de rótulos. Tudo seria tão mais simples se todos pensassem como Nhorinhá e simplesmente fossem e vivessem o que quisessem. Mas isso fica para outra história.
Grande Sertão (2024, Brasil)
Direção: Guel Arraes
Roteiro: Guel Arraes e Jorge Furtado
Com: Caio, Blat, Luisa Arraes, Rodrigo Lombardi, Eduardo Sterblitch, Luis Miranda, Mariana Nunes, Luellem de Castro.
Duração: 108 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Grande Sertão
2024-06-06T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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