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O Cheiro do Ralo
O Cheiro do Ralo
O Cheiro do Ralo (2006) é um daqueles filmes que desafiam e deixam o público em um estado de perplexidade. Dirigido por Heitor Dhalia, o longa é baseado no primeiro romance do quadrinista brasileiro Lourenço Mutarelli, que também faz uma participação como ator no filme. É uma obra que não busca o conforto do espectador, mas sim provocá-lo, incomodá-lo e, em última instância, fazer com que ele reflita sobre a podridão do comportamento humano, condensada na metáfora central do filme: o cheiro que emana de um ralo.
Selton Mello, em uma das performances mais marcantes de sua carreira, encarna Lourenço, um dono de uma loja de penhores que ganha a vida explorando o desespero alheio. Este personagem é, por excelência, a personificação de um capitalismo decadente e predatório, onde a humilhação e a coisificação do outro não são apenas meios para um fim, mas fontes de prazer para o protagonista. Lourenço não é apenas um homem; ele é um colecionador de desesperos e desumanidades. Mello interpreta esse papel com uma maestria inquietante, mostrando como o poder, mesmo que mínimo, pode corromper até o âmago de uma pessoa.
O que torna O Cheiro do Ralo uma obra tão singular é justamente a maneira como ele constrói essa metáfora do poder através do ralo. O cheiro pútrido que invade a loja de Lourenço não é apenas um problema de encanamento, mas um reflexo de sua alma apodrecida. Ele se recusa a consertar o problema, preferindo disfarçar o fedor com desculpas esfarrapadas como "é só um probleminha no ralo". Essa recusa em lidar com o problema, tanto físico quanto moral, é o que alimenta sua obsessão por poder e controle. Ele não quer resolver o problema porque, de certa forma, o cheiro o define e é a sua fonte de poder, ainda que o destrua por dentro.
A direção de Heitor Dhalia é precisa e eficaz, criando um universo visual que reflete a degradação moral do protagonista. As escolhas estéticas, desde o cenário da loja de penhores até a lanchonete onde Lourenço passa a frequentar obsessivamente, são todas meticulosamente construídas para intensificar o desconforto do espectador. Dhalia já havia mostrado seu talento em Nina (2004), uma adaptação modernizada de Crime e Castigo, mas aqui ele vai além, mergulhando o público em um mundo onde a decadência não é apenas física, mas espiritual.
O roteiro, adaptado da obra de Mutarelli, é repleto de diálogos que variam entre o cômico e o perturbador, criando uma atmosfera de humor ácido que permeia toda a narrativa. No entanto, essa mesma força pode ser o calcanhar de Aquiles do filme. A insistência em uma estética de nojo e degradação pode também afastar um determinado público que busca uma narrativa mais tradicional ou personagens que se redimem. O Cheiro do Ralo não oferece redenção; ele nos apresenta um protagonista que parece não aprender nada, e isso pode ser frustrante. A sensação é de que a podridão que ele representa é, em última instância, inescapável. E o cheiro permanece, impregnando a loja e a vida de Lourenço.
As atuações coadjuvantes também merecem destaque, especialmente a de Paula Braun, que interpreta a garçonete que se torna objeto da obsessão de Lourenço. A maneira como ela, sem muitas falas, consegue transmitir uma mistura de desdém e vulnerabilidade é um dos pontos altos do filme. Já Lourenço Mutarelli, como o segurança que trabalha para o personagem de Selton Mello, traz uma presença taciturna que complementa a atmosfera sombria da narrativa.
Um dos momentos mais marcantes do filme é quando Lourenço, obcecado pela bunda da garçonete, chega ao ponto de oferecer dinheiro para simplesmente poder olhar para ela. Essa cena encapsula a objetificação extrema que ele impõe às pessoas ao seu redor. Ele não vê a garçonete como uma pessoa, mas como um objeto de desejo, algo que pode ser comprado e controlado. Esse comportamento é, ao mesmo tempo, uma crítica feroz à forma como a sociedade mercantiliza tudo, incluindo o corpo humano.
O Cheiro do Ralo é, sem dúvida, uma obra que desafia. Não é um filme fácil de digerir, e isso é intencional. Ele nos obriga a confrontar o que há de mais sombrio no comportamento humano, embalado em uma estética de humor que alterna entre o grotesco e o hilário. Uma jornada perturbadora, já que o filme não se preocupa em ser palatável ou em oferecer respostas fáceis.
Para aqueles que buscam um cinema que desafia as normas e provoca reflexões profundas sobre poder, moralidade e a natureza humana, O Cheiro do Ralo é uma escolha certeira. E para aqueles que preferem narrativas mais lineares e menos perturbadoras, é provável que o filme deixe um gosto amargo. Mas talvez, como Dhalia parece sugerir, esse amargor seja exatamente o ponto. Afinal, não há como se limpar sem antes se sujar.
O Cheiro do Ralo (2006 / Brasil)
Direção: Heitor Dhalia
Roteiro: Marçal Aquino e Heitor Dhalia
Com: Selton Mello, Paula Braun, Alice Braga, Lourenço Mutarelli, Milhem Cortaz, Flavio Bauraqui
Duração: 112 min.
Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
O Cheiro do Ralo
2024-10-23T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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