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A Mosca
A Mosca
Existem filmes que desafiam seus próprios gêneros, superando as expectativas do público para entregar algo único e inesquecível. A Mosca (1986), dirigido por David Cronenberg, é um desses raros exemplares. Embora à primeira vista seja lembrado por suas cenas grotescas e efeitos viscerais, sua verdadeira força está na capacidade de entrelaçar elementos de horror corporal, ficção científica e um drama humano profundamente comovente. O remake de A Mosca da Cabeça Branca (1958) é uma obra que nos obriga a confrontar não apenas o horror do corpo em transformação, mas também o colapso das relações humanas quando confrontadas com o imprevisível e o incontrolável.
A trama segue Seth Brundle (Jeff Goldblum), um cientista brilhante, mas socialmente desajeitado, que trabalha obsessivamente em um projeto revolucionário: a criação de uma máquina de teletransporte. Durante uma feira científica, Brundle conhece Veronica Quaife (Geena Davis), uma jornalista inteligente e perspicaz que rapidamente se interessa tanto pelo experimento quanto pelo homem por trás dele. O romance dos dois é o coração pulsante do filme, funcionando como a base emocional sobre a qual Cronenberg constrói sua tragédia.
Quando Brundle decide usar a máquina de teletransporte em si mesmo, sem perceber que uma mosca entrou na cápsula, as consequências são devastadoras. A fusão genética que ocorre desencadeia uma série de transformações físicas e psicológicas que o transformam, literalmente, em algo monstruoso. Mas o que realmente nos toca não é apenas a degradação corporal de Brundle, mas a metáfora pungente de como o relacionamento entre ele e Veronica é destruído em meio a essas mudanças.
Cronenberg, conhecido por seu fascínio com a carne e a deterioração física, demonstra aqui uma habilidade impressionante de usar o grotesco como ferramenta narrativa. Filmes como Videodrome (1983) já haviam explorado temas de transformação corporal e obsessão, mas em A Mosca, ele eleva esses conceitos ao entrelaçá-los com emoções humanas cruas. As cenas de transformação de Brundle são intensamente perturbadoras, desde pequenas mudanças, como o surgimento de pelos grosseiros em seu corpo, até momentos genuinamente angustiantes, como quando ele vomita ácido ou perde partes de seu corpo. No entanto, essas cenas funcionam não apenas como choque visual, mas como símbolos do declínio emocional e psicológico de alguém que perde o controle sobre si mesmo.
Jeff Goldblum entrega uma das performances mais notáveis de sua carreira. Sua transição de um cientista excêntrico e adorável para uma figura trágica e desesperada é absolutamente magistral. Goldblum cria um Brundle com humanidade, mesmo nos momentos em que a maquiagem e os efeitos especiais o tornam quase irreconhecível. Há uma inquietação no seu olhar e uma fragilidade em sua voz que nos fazem sentir sua dor, mesmo quando seu comportamento se torna cada vez mais grotesco. Ele é carismático no início, mas à medida que a transformação física avança, ele se torna mais introspectivo e assombrado. Essa habilidade de equilibrar charme e horror é o que faz de sua atuação um elemento tão crucial para o sucesso do filme.
Geena Davis, por sua vez, oferece uma performance igualmente impactante. Sua Veronica é uma personagem tridimensional, algo raro em filmes de horror da época. Não é apenas uma testemunha passiva das mudanças de Brundle, mas uma participante ativa da história, enfrentando dilemas emocionais e éticos devastadores. Sua cena ao descobrir que está grávida e considerar um aborto é especialmente tocante, ilustrando sua luta interna diante de um cenário cada vez mais assustador.
A maquiagem premiada com o Oscar, criada por Chris Walas e sua equipe, é um espetáculo à parte. O processo gradual de transformação de Brundle é meticulosamente detalhado, de pequenas manchas no rosto ao surgimento de uma criatura completamente grotesca no clímax do filme. A maquiagem não só contribui para o horror visual, mas também reforça o impacto emocional da narrativa. Cada estágio da transformação nos aproxima da inevitável tragédia, ao mesmo tempo em que nos força a confrontar o terror físico de forma visceral.
A direção de Cronenberg é impecável em equilibrar os tons do filme. Ele consegue alternar momentos de ternura entre Seth e Veronica com cenas de horror explícito sem que isso pareça forçado ou desconexo. A cena final, em que a criatura que Brundle se tornou implora por sua própria morte, é um exemplo perfeito da maestria do diretor em unir o grotesco e o emocional. É ao mesmo tempo repulsivo e profundamente comovente, um momento que condensa o espírito do filme: a humanidade que persiste mesmo em meio à completa degradação.
No final, A Mosca não é apenas um filme de horror ou ficção científica. É uma meditação trágica sobre o amor diante da degradação do corpo e da condição humana. Cronenberg usa a carne em decomposição de Brundle como metáfora para o colapso de um relacionamento, o egoísmo e a obsessão que podem destruir até mesmo os laços mais fortes. Sua visão única e intransigente faz deste filme um clássico que continua a provocar, perturbar e emocionar espectadores décadas após seu lançamento.
Se há uma verdade inegável sobre A Mosca, é que ela vai além de seu gênero para se tornar uma obra atemporal. Não importa quantas vezes você a assista, o impacto emocional permanece. No horror, o que realmente assusta não são monstros, mas a fragilidade da humanidade diante do incontrolável.
A Mosca (The Fly, 1986 / Canadá, Estados Unidos e Reino Unido)
Direção: David Cronenberg
Roteiro: Charles Edward Pogue e David Cronenbeg
Com: Jeff Goldblum, Geena Davis, John Getz, Leslie Carlson, Michael Copeman, David Cronenberg, George Chuvalo, Carol Lazare
Duração: 96 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
A Mosca
2025-03-05T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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