The Last Days
The Last Days (1998), dirigido por James Moll e produzido sob o amparo de Steven Spielberg e sua Shoah Visual History Foundation, é um documentário que se propõe a relatar um dos momentos mais brutais e definitivos do Holocausto: a perseguição e o genocídio de judeus húngaros no último ano da Segunda Guerra Mundial. O filme, vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 1999, é uma obra ao mesmo tempo devastadora e indispensável, que transcende os limites do cinema ao transformar memórias pessoais em lições universais.
Dirigido com delicadeza e precisão por James Moll, The Last Days adota um enfoque íntimo, estruturado a partir dos relatos de cinco sobreviventes - Renée Firestone, Alice Lok Cahana, Irene Zisblatt, Bill Basch e Tom Lantos - cujas vidas foram marcadas pela brutalidade inimaginável dos campos de concentração nazistas. A escolha de Moll por não usar narração onisciente, mas sim permitir que os sobreviventes falem por si mesmos, dá ao filme uma profundidade emocional poderosa. É através de suas vozes, entrecortadas por imagens de arquivo e visitas aos locais onde os horrores ocorreram, que o passado ganha vida de forma palpável e dolorosa.
Um dos maiores méritos do filme é sua habilidade em equilibrar a devastação histórica com momentos individuais de humanidade. Irene Zisblatt, por exemplo, conta como engoliu repetidamente os diamantes de sua mãe para protegê-los durante as inspeções nos campos. Esse pequeno ato de resistência e apego ao passado familiar encapsula o impacto monumental da desumanização nazista. Renée Firestone, por sua vez, confronta o médico Hans Münch, um ex-oficial nazista que tentou justificar suas ações em nome de experimentos médicos “brandos”, em um dos momentos mais marcantes e desconcertantes do filme.
A estrutura narrativa de Moll é meticulosamente organizada, mas, às vezes, peca pela falta de ousadia estilística. Hans Zimmer, responsável pela trilha sonora, entrega um trabalho comovente, embora em certos momentos a música soe excessiva, quase manipuladora, ofuscando a crueza dos testemunhos. No entanto, as imagens de arquivo - incluindo registros coloridos de sobreviventes esqueléticos e pilhas de corpos - são absolutamente impactantes, fornecendo uma contrapartida visual para os relatos que ouvimos.
Um dos temas centrais do documentário é a desconstrução do mito de que a perseguição nazista era apenas uma consequência das circunstâncias da guerra. The Last Days deixa claro que, mesmo diante da iminente derrota, Adolf Hitler e seus comandados redirecionaram recursos valiosos para a exterminação sistemática dos judeus húngaros, revelando o ódio irracional e profundo que sustentava a máquina nazista. Essa obsessão genocida, como reflete um dos sobreviventes, ilustra a irracionalidade de uma ideologia que priorizou a destruição de vidas inocentes acima da própria sobrevivência do regime.
Spielberg, que já havia transformado o Holocausto em uma experiência cinematográfica visceral com A Lista de Schindler (1993), empresta aqui sua sensibilidade como produtor-executivo. Sua influência é evidente na abordagem cuidadosa de Moll, que não cai em sensacionalismos fáceis. O filme, ao contrário, mantém um foco respeitoso nos sobreviventes e em suas histórias, evitando retratar os horrores de forma gratuita ou voyeurística.
Embora o filme seja profundamente tocante, ele também pode ser criticado por sua dependência de convenções narrativas tradicionais. Apesar de eficaz, sua estrutura pouco se diferencia de outros documentários sobre o Holocausto. Isso não diminui a importância do filme, mas talvez o prive de um impacto ainda maior, especialmente para públicos acostumados com obras que desafiam as normas do gênero.
O final, entretanto, é uma nota de esperança que oferece um alívio emocional após a jornada devastadora. Tom Lantos, que se tornaria o único sobrevivente do Holocausto a ser eleito para o Congresso dos Estados Unidos, é mostrado com sua família, incluindo 17 netos. Essa imagem é um lembrete poderoso da resiliência humana e da capacidade de reconstrução, mesmo diante da destruição absoluta.
The Last Days é um filme essencial. Apesar de suas limitações estilísticas, ele cumpre um papel vital ao preservar memórias que não podem ser esquecidas. Em uma era onde o negacionismo do Holocausto e o revisionismo histórico ganham força, este documentário é um antídoto necessário contra a ignorância e o ódio. É uma obra que exige ser vista, discutida e lembrada, não apenas como um relato do passado, mas como um alerta para o futuro.
Se há uma lição a ser tirada de The Last Days, é que o cinema não é apenas uma janela para o mundo, mas também um espelho para a nossa humanidade - ou falta dela. Sob a direção sensível de James Moll e a visão de Steven Spielberg, este documentário permanece como um marco no uso do audiovisual para a construção e preservação da memória coletiva.
The Last Days (1998 / EUA)
Direção: James Moll
Roteiro: James Moll
Com: Alice Lok Cahana, Bernard Firestone, Bill Basch, Dario Gabbai, Dr. Hans Münch, Dr. Paul Parks, Irene Zisblatt, Dr. Randolph Braham, Katsugo Miho, Martin Basch, Michael Cahana, Renee Firestone, Robin Zisblatt, Tom Lantos, Warren Dunn
Duração: 87 min.
Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
The Last Days
2025-01-20T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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