O XX Panorama Internacional de Cinema trouxe uma seleção de curtas baianos bastante diversos que nos encanta em aspectos também diversos. Pela representatividade em tela, pela variedade de gêneros, pela qualidade técnica e pelo apelo emocional, é bonito ver como o cinema da terra está se fortalecendo a cada dia. Curta-metragem não é apenas um experimento ou etapa para um longa. É uma linguagem capaz de entreter, emocionar e fazer pensar como qualquer outra obra cinematográfica e merece ser valorizada. Aqui trago algumas das obras que mais me tocaram nessa edição.
Vovó foi pro céu
Direção: Hilda Lopes Pontes e Klaus HastenreiterLidar com a morte é difícil. Agora imagine para uma criança? A nossa tendência é sempre deixar os pequenos à parte, sem muitas explicações e também sem espaço para que elas lidem com o luto. Em Vovó foi pro céu, Gabriela, com apenas sete anos, tem que lidar com a morte de sua avó, mas é difícil quando sua mãe se fecha no sofrimento e não se permite conversar com a filha, nem deixar que ela mexa nos pertences da falecida. A esperança da garotinha é, então, fazer um bolo para levar para sua avó lá no céu.
Há uma poesia especial na obra, que traz como atriz mirim a filha dos diretores e que entrega uma emoção autêntica em cada momento, em especial no final. Hilda e Klaus brincam com as linguagens do melodrama, do terror e do nonsense de uma maneira bastante perspicaz fazendo da trajetória da garotinha uma expressão visual do tempo do próprio luto. Do medo do vazio, do pavor de algo pior que possa vir. Ao mesmo tempo, trabalha na delicadeza de uma brincadeira de bonecas ou uma dança que resgata e religa essas mulheres em diversos aspectos.
Palavra
Direção: DF FiuzaNão é por acaso que um filme chamado Palavra não deixa que suas personagens emitam uma única sílaba em cena. Essas mulheres retratadas tem pouca ou quase nenhuma voz na sociedade. Artesãs que trabalham desde a captura de sua matéria-prima, as palhas de coqueiro, até a confecção das peças com palha seca, elas se misturam a commodities pouco valorizadas, mas que, provavelmente, terão suas obras vendidas por terceiros a preços que elas nem sonham em ter um dia.
Isso não está exatamente expresso ou explícito na obra de DF Fiuza, mas de alguma maneira nos evoca essa reflexão. Ao acompanhar a rotina e tradição daquelas mulheres simples, o filme nos dá também a perspectiva de que a vida pode ser mais simples do que estamos acostumados em meio a rotina competitiva da busca pelo dinheiro. Há ali também muita sabedoria e inspiração passada de geração a geração que nos impressiona e envolve, emocionando pelo talento e pela forma como aquelas simples palhas através de mãos habilidosas se tornam peças tão belas.
Tigrezza
Direção: Vinicius Eliziário“Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel…” a música de Caetano Veloso serve de inspiração para obra e para a personagem principal da obra de Vinicius Eliziário que ao mesmo tempo em que performa nos palcos, tem que lidar com a frustração de não conseguir um boy para si, por ser “afeminado”. Enquanto isso, seu melhor amigo, Danrley é incentivado por ela a se libertar de padrões binários, reencontrando sua essência.
Tigrezza tem um ritmo tão envolvente na rotina daqueles dois que nem vemos os trinta e cinco minutos da obra passarem. As personagens são bem desenvolvidas nos dando uma sensação de conhecer ou já termos visto em algum lugar. A rotina entre a boate e a casa de Tigrezza é construída de maneira fluida, explorando bem as nuances do mundo LBGTQIAP+ e demonstrando que as histórias podem ser sobre tudo, inclusive sobre preconceitos.
Bárbara
Direção: Vilma Carla Martins“A arte salva”, por mais clichê que pareça, essa é uma frase que resume bem Bárbara, não apenas o filme, como a história em que a obra foi inspirada. Em um mundo desigual, de pobreza e exploração, um pai de família se entrega ao álcool até para tentar esquecer os problemas, mas as consequências impõe violência e medo em esposa e filhos que temem as situações vividas. A pequena Bárbara, então, é um alívio nessa realidade desumana, apaixonada pelo teatro, brincando e experimentando, ela traz graça e leveza à situações difíceis.
A diretora Vilma Martins busca mesclar essa realidade sofrida com as fantasias de Bárbara, que sempre gostou de imitar os outros para fazer graça. A magia do teatro é introduzida aos poucos ajudando a construir essa atmosfera lúdica de esperança e amor, sendo a melhor parte da obra. Talvez o filme pudesse explorar mais isso, já que toda a ambientação do trabalho e realidade do pai acaba sendo superficial já que não é o foco da narrativa.
A menina espoleta e os super-heróis secretos
Direção: Paula Lice, Pedro Perazzo e Tais BicharaQual criança nunca imaginou e brincou de ser super-herói? Dirigido por Paula Lice, Pedro Perazzo e Tais Bichara, a menina espoleta é um rito de passagem que afirma que apesar de tudo mudar, nada muda em sua essência. Lilica tem que se mudar de casa, sair de um sítio onde está acostumada a brincar pela natureza para morar em um apartamento na cidade. O fim daquela vida é ainda mais dolorido porque ela terá que abandonar seus amigos imaginários que a ajudavam todos os dias a salvar o mundo. A maneira como os diretores brincam com a imaginação infantil, misturando live action com animação, é divertida e envolvente. Um mundo lúdico que nos preenche em diversos aspectos.
Borderô
Direção: Hilda Lopes Pontes e Klaus HastenreiterUma atriz e um diretor, um casal desgastado pelas frustrações das tentativas de vencer na vida fazendo arte. Na noite de estreia, apenas uma pessoa na plateia (e que pagou meia). O diretor quer desistir, mas a atriz sabe que precisa preencher o palco. Borderô é uma metáfora e ao mesmo tempo um retrato realista do que é viver de arte no Brasil. A maneira como os artistas independentes vão se desgastando a cada tentativa frustrada de manter seu sonho. O casal cansado, contrastando com o jovem deslumbrado na plateia, emociona.
Se é para falar de arte, Hilda e Klaus arriscam também outras linguagens, a começar pelo musical, passando pela poesia até o próprio cinema em uma construção metafórica do que vemos e o que é encenado. Os três atores estão muito bem em sua dança desengonçada no palco, oferecendo uma experiência instigante. Faltou tempo talvez, para mergulhar mais a fundo na proposta. Em muitos momentos, Borderô parece uma amostra do que gostaria de ser, nos deixando um gostinho de quero mais.
Ataques Psicotrônicos
Direção: Calebe LopesUm ex-pastor, uma cientista e um estranho zumbido que o atormenta. Mais do que uma narrativa, a obra de Calebe Lopes é uma experiência estética instigante. A obra nos oprime e aperta desde sua razão de aspecto, passando pela escolha do preto e branco, com uma estética de película. O som nos conduz em seus beats angustiantes que nos confundem e ao mesmo tempo nos informa.
Sem muita preocupação em explicar, Calebe se permite brincar com a linguagem e suas construções de efeito. Mergulhamos naquele universo distópico ao lado do protagonista com a mesma intensidade dele que quer se livrar daquilo que acredita ser vítima. E com a mesma curiosidade da cientista que apenas observa seu experimento. Nas entrelinhas, críticas diversas podem ser subentendidas entre política, religião e sociedade, mas o melhor é se deixar levar mesmo pela experiência.