Exatamente, Lincoln não é sobre Lincoln, mas sobre a sua luta para abolir a escravatura em seu país. Em plena Guerra de Secessão, Norte e Sul disputavam as regras do país, onde o sul escravocrata e rural enfrentava o norte abolicionista e liberal. O roteiro de Tony Kushner passará pela guerra, pela vida do presidente e por qualquer acontecimento histórico apenas como ambientação para construir o que realmente lhe interessa: a votação da ementa. Acoplando a proibição de escravizar homens de qualquer espécie na constituição, não havia volta.
E Steven Spielberg se vale de toda a sua capacidade de construir um bom melodrama para nos envolver nessa história. Nos dá até uma ponta de inveja que a abolição tenha chegado aqui tão tardiamente e de uma maneira tão menos poética e ideária. Há de se admirar Abraham Lincoln e seu sonho de um país igualitário. Assim como homens a exemplo de Thaddeus Stevens, interpretado por Tommy Lee Jones e todos os republicanos que discursam no parlamento em prol de seres humanos que foram rebaixados sem motivo algum, senão o dinheiro e poder, a uma classe menor.
Aliás, é admirável como o filme consegue nos passar todas as nuanças por trás da questão racial que nada mais é do que uma disputa por poder, por possível perda de privilégios e questões econômicas mesquinhas. Ponderações como "o que faremos com os negros libertos?" que parecem preocupações sociais apenas, escondem medos como "e o negro poderá votar?", "o que vem depois, sufrágio universal?" Interessante ver a unanimidade se formando na câmera com a possibilidade de um voto feminino. Mesmo homens que pareciam tão justos e humanos não querem disputar o poder com suas esposas.
Mas, o que impressiona mesmo em Lincoln é a técnica apurada. Spielberg constrói as cenas de uma maneira visivelmente calculada. São detalhes como após a conversa inicial a câmera se aproximar lentamente, pegando o perfil de Daniel Day-Lewis e a música emocionante subindo. Pronto, está apresentado o herói. Ou sua cena deitando no chão do quarto do filho, com uma meia luz vindo da janela, em uma composição aconchegante, bela, ainda que com certa melancolia. A fotografia toda é muito bem cuidada usando inclusive fumaças e neblinas para dar o tom em alguns momentos.
E claro, as atuações. Daniel Day-Lewis não interpreta Abraham Lincoln, ele o é. É impressionante a transformação do ator, a forma como é sutil, doce e poderoso ao mesmo tempo. Há nele um ar de admiração incrível. E conhecemos também um Lincoln mais próximo, humano, não apenas o mito. Um homem que conta piadas a todo momento, que é amável com os filhos e tem medo da esposa. Sally Field o acompanha com uma bela interpretação dessa mulher que fica à sombra do marido histórico. Mas, o outro nome que chama a atenção é mesmo Tommy Lee Jones, um homem que é maleável em sua dor e seus ideais para construir o bem comum.
Porém, algumas coisas incomodam na condução do filme. Sua longa duração acaba cansando, principalmente a quem não é norte-americano, até por seu formado verborrágico, ainda que com excelentes diálogos. Há também a trama quase desnecessária do filho mais velho de Lincoln vivido por Joseph Gordon-Levitt. Há um drama exagerado no medo da mãe em perder outro filho e por isso fazer o pai o proibir de ir à guerra. Ainda que entenda a carga dramática ali presente, há um excesso do tom, principalmente em uma cena de discussão entre Daniel Day-Lewis e Sally Field, onde sua personagem parece aquelas matronas exageradas de melodramas do século XIX com direito a jogar-se no chão e tudo mais.
Spielberg parece a todo custo nos fazer querer fazer chorar, tanto que faz escolhas duvidosas como determinada cena na parte final envolvendo o pequeno Tad Lincoln. Isso sem falar na forma como a música entra, sempre subindo de maneira pomposa em momentos-chave. Mas, quando as cenas são genuínas, e não forçadas, realmente emocionam como uma determinada cena em que é dito "bem vindos à sua casa", a cena da conversa na frente da casa da senhora Keckley ou mesmo a cena final após uma fusão com a luz da vela.
Não diria que Lincoln é um grande filme, mas um filme muito bem feito. Necessário até em alguns pontos, principalmente para os norte-americanos refletirem sobre sua própria história, ainda mais após a reeleição de seu primeiro presidente afro-descendente. Época de mudanças de valores, ainda que tardia. E que mostra que o sonho de Lincoln, por mais distante, ainda tem esperanças de florescer nos corações humanos.
Lincoln (Lincoln, 2013 / EUA)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Tony Kushner
Com: Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Tommy Lee Jones, Joseph Gordon-Levitt, James Spader
Duração: 150 min.